terça-feira, 6 de dezembro de 2016

Onde o antigo e o moderno andam de mãos dadas


Há poucos sítios assim, onde se caminha entre prédios modernos e abraça-se, sem querer, uma coluna com milhares de anos; ou onde se vislumbra o centro de uma cidade antiga a partir do terraço de um moderno e vistoso hotel. Em Atenas, o berço da Antiguidade, é assim; dois mundos diferentes, de tempos distantes, que se envolvem em discreta harmonia.

Uma mudança tranquila, sob o olhar da deusa

Quando entrei no avião, imaginava que poderia encontrar o caos. O governo acabara de ser eleito e estava em braço-de-ferro com a União Europeia, num país onde mais de um quarto da população está desempregada e que passa por uma séria crise económica. Chegada à cidade, ali onde a filosofia nasceu e a democracia germinou, na realidade sinto paz. Aquela que vem da gente que sabe para o que vive e que se ajusta ao que tiver que ser, com mais ou menos desembaraço.

O templo de Zeus, de noite
The temple of Zeus, at night

Satisfeita pela tranquilidade que me invade, vislumbro em frente ao Hotel no centro da cidade o que resta do Templo de Zeus, um conjunto incompleto de colunas arredondadas dispersas por um relvado, rodeado por um casario branco e denso que se alonga até às montanhas. Noto a desenvoltura com que os gregos conciliam as mudanças trazidas pelos ventos históricos, juntando o antigo ao moderno sem preconceitos. 






O templo de Zeus, visto de dia, a partir do hotel 
The temple of Zeus, seen at daylight from the hotel

Os monumentos milenares – ou o que resta deles, espalham-se por uma metrópole perfeitamente funcional, com uma rede de metro nova e bonita – herança dos Olímpicos de 2004, negócios variados a ladear as ruas, uma extensão de casas periféricas a perder de vista e pessoas num frenesim tipicamente urbano. A cidade de Atenas cresceu sem se soltar das raízes. Também não podia, com a vigilância constante da Acrópole que a observa do topo do monte. A luz intensa que emana do Pártenon faz-me acreditar que a adorada deusa Atenas continua a velar pela cidade e pelos gregos, agora contentes por esta renovação política mas mesmo assim ansiosos pelo possível desfecho. Ioanna, uma bela e simpática grega, diz que está satisfeita com a mudança mas desconfia do resultado. Tem que se esperar para ver! Entretanto, ao mesmo tempo que tinha esta conversa, um grupo de cidadãos juntava-se na Praça Syntagma, o centro político de Atenas, para demonstrar o seu apoio ao novo governo, em luta por um novo plano de crédito da odiada Troika. Passada mais de uma semana, este capítulo ainda não foi encerrado, mas espero que aquela serenidade, mesmo em plena desordem, se mantenha.

A Acrópole (Cidade Alta)
The Acropolis (High City)

A vida em ruínas

Para quem a visita o encantamento ainda resulta. Há 2500 anos que o vento sopra entre as colunas do templo dedicado a Atenas. Já foi mesquita e igreja católica, já ardeu e desabou, e já voltou a ser templo, espiando a cidade que muda aos seus pés. A persistência é uma qualidade admirável, e só por isso vale a pena caminhar no complexo da Acrópole, tocar as suas colunas desbotadas, pisar as muitas pedras gastas e surpreender-se com os braços das estátuas que ainda perduram. Visto de perto, no entanto, parece que o Pártenon mal se aguenta em pé. Há partes da estrutura que desapareceram completamente, os andaimes de ferro proliferam, as máquinas modernas ocupam o espaço que deveria pertencer à História. Mais ruína do que esperava, o Pártenon surgiu-me com uma técnica de renovação no mínimo surpreendente: mármore (assim parece) encaixado em calcário antigo, a brancura plena em contraste com o castanho usado. Parece estranho, como se roubassem, pedra a pedra, a origem mística do templo e o seu carácter. Bem sei que não devia ser tão exigente com monumentos desta antiguidade, que sofreram inúmeras atrocidades por esses milénios fora, mas não consigo resistir a esta mágoa que me invade.

Pormenor da reconstrução do Pártenon
Detail of Parthenon's reconstruction
Vista parcial do Pártenon
Partial view of the Parthenon
Apesar desta sensação inesperada, o fascínio pelas ruínas é infindável. Do lado sul da Acrópole, observo o Teatro de Dionísio, dedicado ao deus do vinho, e imagino as bancadas de pedra em meia-lua repletas de gente, de taça de vinho na mão, a assistir a uma tragédia. Em frente ao Pártenon, ergue-se um pequeno templo chamado Erecteion, sustentado pelas “moças de Karyai” (cariátides) eternizadas em estátuas de dimensão humana. Da vertente norte da Acrópole, por entre as estátuas das moças (agora cópias fiéis) e as colunas resistentes, espreito os recantos da cidade, que se estende como um manto branco até às encostas das serras. 

As "moças de Karyai" que sustentam o Erecteion
The "maids of Karyai" which sustain the Erecteion
O Teatro de Dionísio
The Theatre of Dionysius
Do lado do Propileu, a entrada monumental da Acrópole, avisto lá em baixo o templo de Hefesto, o deus grego do fogo. Parece intacto, por entre os arbustos que o acompanham. Na realidade, é o templo mais bem conservado de todo o complexo e, apesar de menos conhecido, é simplesmente grandioso! E enquanto estas estruturas antigas, aninhadas aos edifícios modernos e às casas brancas que cobrem o solo, me vão contando a sua história, a cidade vai-se estendendo até às montanhas, de um lado, e até ao mar, do outro, até ao porto de Pireus. Ali onde, mais uma vez, os contrastes se tocam, a terra e o mar abraçam-se, sem preconceito. Uma qualidade extremamente valiosa que espero que a Grécia consiga manter sempre.

O templo de Hefesto
The temple of Hephaestus

Panoramas da cidade de Atenas, a partir da Acrópole
Views of the city of Athens, seen from the Acropolis
Atenas, a terra e o mar, o antigo e o moderno
Athens, the land and the sea, the ancient and the modern


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Where the modern goes hand-in-hand with antiquity

There are few places like that, where you walk between modern buildings and, unintentionally, you can touch a column with thousands of years; or where you can observe the center of an ancient city from the terrace of a modern and flashy hotel. In Athens, the cradle of Antiquity, it is so; two different worlds, from distant times, which engage in discreet harmony.  

A peaceful change, under the eye of the goddess

When I got on the plane, I thought I could find chaos. The Government had just been elected and was wrestling with the European Union, in a country where over a quarter of the population is unemployed and is going through a serious economic crisis. However, as I arrived in the city, where philosophy was born and democracy flourished, I actually felt peace. That sense of peace that comes from meeting people who know what they live for and that adjust themselves to whatever comes.

Satisfied by the tranquility that invades me, I look outside the hotel located in the center of the city, and have a glimpse of what is left of the Temple of Zeus, an incomplete set of rounded-shaped columns dispersed through grass, surrounded by a white and dense blanket of houses which stretch until the mountains. I notice the agility of the Greeks in conciliating the changes brought by historical winds, joining the ancient with the modern without any prejudice. The millenary monuments – or what is left of them, are spread in a perfectly functional metropolis, with a new and beautiful metro network – an inheritance of the 2004 Olympics, several types of businesses flanking the streets, an extensive periphery of houses and people with the typically urban frenzy. 

The city of Athens grew without losing its roots. Well, it couldn’t anyway, as it is under the endless vigilance of the Acropolis which observes it from the top of the hill. The intense light released by the Parthenon makes me believe that the adored goddess Athens keeps watching over the city and the Greeks, now happy for this political renovation but still anxious with the possible outcomes. Ioanna, a beautiful and friendly Greek, says she is pleased with the change but suspicious of the results. We have to wait and see! Meanwhile, at the same time of this conversation, a group of citizens was gathering at Syntagma square, the political center of Athens, to demonstrate their support to the new government, who is fighting with the despised Troika for a new credit plan. Over a week later, this chapter was not yet concluded, but I hope that this calmness, even in disorderly times, can be kept.
  
The life in ruins

For the visitors the charm still works. For 2500 years the wind has been blowing amidst the columns of the temple dedicated to the goddess Athens. It has been a mosque and a catholic church, it has been burnt and it has collapsed, until it became a temple again, spying on the city which changes at its feet. Persistence is an admirable quality, and just for that reason it is totally worth it to walk through the complex of the Acropolis, to touch its faded-colored pillars, to step on the many used rocks and get surprised with the arms of the statues that still remain. 

Seen from up close, however, it seems that the Parthenon can barely stand. There are parts of its structure missing, the iron-made scaffolds proliferate, modern machines occupy the space that should belong to History. More in ruins than I expected, the Parthenon appeared to me with a surprising renovation technique: marble (so it looks) encased in old limestone, the pure whiteness contrasting with the old brownish. It looks strange, as if they were stealing, stone by stone, the mystical origin of the temple and its character. I know that I shouldn’t be so demanding with antique monuments like this one, which suffered innumerous atrocities throughout millennia, but I just can’t resist to this sad feeling that invades me.

Albeit this unexpected feeling, the fascination for the ruins is infinite. On the southern side of the Acropolis, I see the Theater of Dionysius, the god of the wine, and can perfectly imagine the half-moon stoned seats crowded with people watching a tragedy, with a goblet of wine in their hands. In front of the Parthenon, it rises a small temple called Erecteion, sustained by the “maids of Karyai” (caryatides), made eternal by the statues of human dimension. From the north side of the Acropolis, among the statues of the maids (now realistic copies) and the remaining columns, I peek at the city, spreading as a white mantle until the slopes of the mountains. On the side of the Propylaeum, the monumental gateway to the Acropolis, I can see further down the temple of Hephaestus, devoted to the god of fire. It looks intact, amidst the bushes that involve it. In fact, it is the most well preserved temple of the entire complex and, despite less famous, it is simply magnificent!

While these ancient structures, entangled in the modern buildings and the white houses that cover the ground, are telling me their stories, the city keeps stretching to the mountains, on one side, and to the sea on the other, until the port of Piraeus. There where, once more, different sides touch and land and sea are embraced without prejudice. A highly valuable quality that I hope Greece can keep forever. 

quinta-feira, 29 de janeiro de 2015

Sobreviventes - a celebração

Em tempo de celebração pela libertação do campo de concentração de Auschwitz-Birkenau, assinalado na terça-feira, recordo uma experiência marcante num encontro que tive com um sobrevivente do Holocausto. Na altura da guerra ele tinha 11 anos, no dia deste encontro há dois anos tinha 81. Lembro-me muito bem dos seus olhos azuis profundos, marejados de uma tristeza dolorosa. O seu olhar vagueava pela sala enquanto contava alguns episódios da sua vida de prisioneiro, primeiro, e de fugitivo, depois. Simon não chegou a ir para o campo de concentração, graças à coragem de um punhado de jovens belgas, mas isso não impediu que as "feridas de guerra" o atingissem, onde se inclui a perda da mãe e da irmã nos campos. 

Depois deste encontro, espicaçada pela curiosidade de saber mais sobre as experiências desta guerra, li o livro do italiano Primo Levi, "Se isto é um Homem", que narra na primeira pessoa - a pessoa de Levi - os meses que passou no campo de Auschwitz e a luta cruel pela sobrevivência quando até a dignidade humana lhe foi roubada. Não é leitura de cabeceira antes de dormir, nem para estômagos fracos. É uma história muito difícil e violenta. Mas é real. E também por isso vale a pena, para podermos celebrar, sempre que possível, esta libertação.

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19 de Abril de 1943. Manhã cedo em Mechelen, Bélgica. Um comboio parte com mais de 1600 passageiros a bordo. Simon Gronowski, de 11 anos de idade, está sentadose junto 1200 passageiros a bordo junto à sua mãe. Subitamente o comboio pára e ouve-se o desferrolhar pesado das portas. Ouvem-se tiros e a luz trémula do dia entra no compartimento. No meio da confusão gerada, a mãe de Simon empurra-o para fora do vagão. Simon salta sem vontade, esperando que a mãe o siga. Outras pessoas saltam de outros vagões, vozes de pânico ressoam no ar. Homens de fatos cinzentos aproximam-se a correr gritando. Simon não sabe o que fazer, faz apenas o que o instinto lhe pede: foge, correndo até não poder mais.

70 anos depois, Simon Gronowski, um velhote de traços vincados, olhos claros profundos e sorriso tímido, está defronte a uma plateia partilhando a sua história. Um homem de extrema coragem, um sobrevivente. Filho de pai polaco e mãe lituana, descendente de judeus, Simon fora recolhido da sua casa por militares nazis, juntamente com a sua mãe, e levado para uns campos em Mechelen, onde esperara pela viagem que, pensavam eles, os levariam para campos de trabalho. Na realidade, o comboio onde ele seguia destinava-se a Auschwitz. No dia da partida, a resistência belga, composta por três jovens armados apenas com uma pistola e uma lanterna, pararam o comboio, abriram as portas de um vagão e deram início à fuga de mais de 200 prisioneiros. Simon, empurrado pela mãe para fora do comboio, foi um deles. Ela não.
No meio da plateia, de olhos postos no senhor de voz doce, penso nesta primeira, e talvez única, oportunidade de ver e escutar ao vivo um sobrevivente do Holocausto. Nem consigo imaginar a dor e a solidão de um menino de 11 anos fugindo pelos bosques de Mechelen para sobreviver. Simon conta-nos que foi recolhido por famílias belgas, mantendo-se escondido em casa deles durante os longos 17 meses até ao fim da guerra. Ajudado e alimentado, Simon sobreviveu, mas por dentro algo se partiu irremediavelmente; entre os pesadelos nocturnos e o medo que o impediam de dormir, os ataques de pânico e as crises de choro incontrolável, a guerra foi deixando cicatrizes profundas, como sulcos marcados na alma, aqueles mesmo que o sufocavam e o impediam de falar abertamente sobre este período negro da sua vida ao longo de décadas. Não é fácil partilhar algo assim. Simon Gronowski, ao fim de 70 anos, de olhos brilhantes de lágrimas e discurso pausado, consegue. Diz que perdoou e que acredita na bondade do ser humano. A sua voz calma e a postura humilde mostram que não tem raiva. Mas não conseguiu perdoar Deus. “Se Deus existisse” – diz com firmeza, “isto não teria acontecido”.
Depois de alguns minutos de perguntas, um senhor alto e magro, de olhos grandes redondos e tez negra e brilhante, com menos de 40 anos, levanta-se e fala com tremor na voz. Também ele é um sobrevivente e carrega nos ombros o peso do ódio étnico que ceifou a vida a 1 milhão de pessoas em 3 meses. É um tutsi, perseguido pelos hutus durante o genocídio do Ruanda há 20 anos atrás. Ele conseguiu escapar, sobreviveu. Muitos outros que ele conhecia não. Por isso ele partilha e dá a cara, apesar da dor que sente por cada palavra que profere, como setas envenenadas que lhe dilaceram o coração .
Nota da autora (eu, portanto). Este privilégio de partilhar a sala com dois sobreviventes deste calibre ocorreu numa das minhas recentes visitas à cidade cosmopolita que é Bruxelas. Circunstâncias inesperadas mas oportunas permitiram-me estar lá no dia certo. Provavelmente nunca mais se repetirão. As histórias dos sobreviventes sim, serão repetidas. As vezes que forem precisas.