quarta-feira, 18 de setembro de 2013

Desabafos de uma ex-professora

O último ano

Lembro-me do meu último ano. Foi há 10 anos atrás. No início de Outubro de 2003, o meu pai trouxe-me uma notícia que eu já não esperava. “Foste colocada, com horário completo. Em Peniche.” “Peniche? Mas eu não concorri para Peniche!”, pensei eu instantaneamente. É claro que concorri, não para a escola individualmente, a qual não me lembrava – e bem - de ter colocado no impresso de candidatura, mas para um distrito que se estende desde Castanheira de Pêra, a Norte, até ao Bombarral, a Sul, duas sedes de concelho que distam 160 km uma da outra. Com esta notícia, fiz o que milhares de professores fazem todos os anos: peguei na trouxa e fui apresentar-me ao trabalho a 90 km de distância da minha casa, no período curto e obrigatório de 2 dias, sem ter tido tempo de procurar casa ou de me habituar à ideia da mudança.
Algumas semanas mais tarde, lembro-me de uma colega ter descrito a minha chegada à escola no dia em que me apresentei. Entrei esbaforida pela sala de professores dentro, carregando ao ombro um pequeno saco de viagem escuro onde trazia meia dúzia de roupas, de olhar perdido e confuso mas com ar simpático. A confusão não era para menos; tinha acabado de chegar a Peniche onde começara a trabalhar naquela hora e não tinha onde dormir essa noite. Nem sequer sabia se havia pensões disponíveis e também não tivera tempo para me debruçar seriamente sobre o assunto. Naquela altura não tinha carro e os transportes públicos para percorrer a estrada de regresso a casa eram poucos. Estava literalmente presa a um sítio que não escolhi directamente, mas o qual não podia recusar sob pena de não poder concorrer nos 2 anos seguintes. E chegada à escola, descobri que tinham tirado horas do meu horário completo para darem a outra professora de Geografia, uma residente local, apesar da ilegalidade e da injustiça dessa acção (confirmada depois pelo Ministério), com a qual perderia parte do salário e precioso tempo de serviço.
O início deste meu ano lectivo não augurava nada de bom. Com o passar dos dias, as coisas foram-se compondo e a minha vida de nómada começou a organizar-se em redor de uma escola pobre e cheia de problemas mas simpática, e de uma faixa costeira lindíssima, onde os episódios mais frustrantes se dissipavam nas ondas do mar. Acabou por correr bem, durante os 4 meses que lá estive. 4 meses apenas, porque em Fevereiro de 2004 tomei uma decisão que mudaria a minha vida; rescindi o contrato com a escola e parti para o outro lado do mundo, disposta a começar outro rumo profissional e a deixar este, que antes tanto me fascinava, para trás.

Dez anos depois
Passados 10 anos, as razões que me levaram a desistir do ensino público em Portugal continuam presentes, ou até mais fortes. Não foi o ensinar, preparar as aulas, corrigir centenas de testes ou aturar os miúdos. Não foram as conversas difíceis com os pais ou as reuniões chatas de fim de período. Não foi sequer a frustração de ver o esforço perdido no desinteresse dos alunos ou as más decisões do Conselho Directivo. Não foi nada disso que me levou a mudar. Foi, essencialmente, a falta de opções derivada de um sistema de colocações injusto e de pouca confiança. Ter que concorrer às cegas, sem saber antecipadamente onde há vagas e sem ter a mínima indicação de como será o ano lectivo seguinte, limitando as restantes opções de vida a um “carpe diem” angustiado. Ser obrigada a aceitar algo que não me agrada para não ser penalizada, como um horário minúsculo longe de casa. Fazer contas e perceber que estou a pagar para trabalhar, mas se quero continuar no ensino público em Portugal, não tenho alternativa.

Quantos professores, após 10 anos, continuam a ser levados por esta montanha-russa de emoções, que contrapõem o amor a um trabalho à falta de perspectivas de estabilidade? Sei que a maioria dos meus amigos da faculdade, de onde saí há 11 anos, não foram colocados, e os poucos que foram ou têm horário incompleto ou estão nas ilhas. Os meus amigos têm duas mãos cheias de anos de ansiedade, incerteza, deslocações diárias, frustração e cada vez menos perspectivas de contribuir para um ensino de maior qualidade. Sim, porque todos sabem que, nos dias de hoje, ter 35 alunos numa turma impede o funcionamento produtivo de uma aula e o acompanhamento personalizado exigido pelos desafios do mundo de agora. Um mundo diferente de há 20 anos atrás, quando eu andava na escola, e quando um murro na mesa ou uma chamada de atenção mais enérgica do professor nos punha todos em sentido; e quando o professor era a fonte primária de conhecimento e não havia telemóveis ou internet a competirem pela minha atenção.

Já nos tempos de faculdade, quem estudava para ser professor sabia que, no início da carreira, andaríamos a saltitar de um lado para o outro, até vincular a uma região. Aos 20 e poucos anos até é uma experiência gira, conhece-se um bocadinho mais de Portugal, conhece-se melhor o sistema e escolhe-se depois a região de preferência para ficar. Mas 10 anos é quase um terço da carreira, não é o início. E os professores são os únicos trabalhadores neste país (excepto os recibos verdes e os bolseiros de investigação, que me lembre) que não estão sujeitos à regra dos 3 anos de contrato, após os quais seriam integrados na “empresa” ou dispensados. Não. Os professores podem estar continuamente a contrato e podem ser dispensados após 15 ou 20 anos de serviço, mesmo que esse serviço tenha sido muito bom. A discrepância de critérios não se fica por aqui; a implementação de um exame para entrada na profissão, um princípio que me parece aceitável seguindo o exemplo de Itália (onde quem quer entrar no ensino faz um exame no primeiro ano), é exemplo disso. Parece que os professores em Portugal se esquecem do que aprenderam de um ano para o outro e não ganham experiência com o tempo de serviço, já que terão que repetir o exame todos os anos. Por acaso os advogados ou os técnicos oficiais de contas em Portugal repetem o exame de entrada na respectiva Ordem depois de aprovados? Obviamente que não, porque simplesmente não faz o mínimo sentido.

A liberdade de poder escolher
Não sou contra a mudança, pelo contrário. Quem me conhece sabe que continuo a ter alma de nómada. A verdade é que já fui para muito mais longe do que me mandaram os concursos de professores em Portugal, já vivi a milhares de quilómetros de distância da minha casa e já mudei de local de trabalho várias vezes. Mas fi-lo sempre porque quis e quando quis. Fui para a Austrália sabendo meses antes para onde ia e em que condições. Mudei-me para Itália meses depois de negociar o dia de início de contrato, para poder finalizar todas as tarefas do trabalho que tinha então. Recusei um trabalho na Comissão Europeia em Bruxelas, e isso não impediu que me oferecessem outro no mês seguinte. É esta possibilidade de escolha, de poder dizer “Sim” com tempo para me preparar para a mudança, ou poder dizer “Não” sem me excluírem da lista, que não existe no ensino público em Portugal.

Gostava de dizer aos meus amigos professores e educadores que isto é tudo passageiro, que vale a pena continuar a tentar, que ensinar é uma missão que vai voltar a ser valorizada por quem nos governa e por todas as pessoas deste País. Que o bom senso, a vontade de melhorar a educação em Portugal e a experiência de professores de todo o país vão prevalecer. Gostava. Porque acredito mesmo que a educação oferece a solução para muitos problemas por este mundo fora. Mas olhando para o panorama de agora, acho que vai demorar. Tenho o maior apreço pelos meus amigos, e todos os outros, professores e educadores, que continuam a labutar por um trabalho e um sistema de ensino que, neste momento, tão pouco tem para lhes dar em troca. Mas também tenho grande consideração por quem escolhe diferente e diz “Basta”, decidindo trilhar outro caminho e pôr as suas capacidades de professor, a sua versatilidade e a sua experiência pessoal ao serviço de outras pessoas, noutros trabalhos. Ganha-se, pelo menos, a liberdade de controlar a sua vida e não andar ao sabor de um sistema que muda constantemente as regras do jogo, um sistema que exclui a vertente humana do trabalho de professor, afinal a mais importante de todas.