quinta-feira, 29 de janeiro de 2015

Sobreviventes - a celebração

Em tempo de celebração pela libertação do campo de concentração de Auschwitz-Birkenau, assinalado na terça-feira, recordo uma experiência marcante num encontro que tive com um sobrevivente do Holocausto. Na altura da guerra ele tinha 11 anos, no dia deste encontro há dois anos tinha 81. Lembro-me muito bem dos seus olhos azuis profundos, marejados de uma tristeza dolorosa. O seu olhar vagueava pela sala enquanto contava alguns episódios da sua vida de prisioneiro, primeiro, e de fugitivo, depois. Simon não chegou a ir para o campo de concentração, graças à coragem de um punhado de jovens belgas, mas isso não impediu que as "feridas de guerra" o atingissem, onde se inclui a perda da mãe e da irmã nos campos. 

Depois deste encontro, espicaçada pela curiosidade de saber mais sobre as experiências desta guerra, li o livro do italiano Primo Levi, "Se isto é um Homem", que narra na primeira pessoa - a pessoa de Levi - os meses que passou no campo de Auschwitz e a luta cruel pela sobrevivência quando até a dignidade humana lhe foi roubada. Não é leitura de cabeceira antes de dormir, nem para estômagos fracos. É uma história muito difícil e violenta. Mas é real. E também por isso vale a pena, para podermos celebrar, sempre que possível, esta libertação.

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19 de Abril de 1943. Manhã cedo em Mechelen, Bélgica. Um comboio parte com mais de 1600 passageiros a bordo. Simon Gronowski, de 11 anos de idade, está sentadose junto 1200 passageiros a bordo junto à sua mãe. Subitamente o comboio pára e ouve-se o desferrolhar pesado das portas. Ouvem-se tiros e a luz trémula do dia entra no compartimento. No meio da confusão gerada, a mãe de Simon empurra-o para fora do vagão. Simon salta sem vontade, esperando que a mãe o siga. Outras pessoas saltam de outros vagões, vozes de pânico ressoam no ar. Homens de fatos cinzentos aproximam-se a correr gritando. Simon não sabe o que fazer, faz apenas o que o instinto lhe pede: foge, correndo até não poder mais.

70 anos depois, Simon Gronowski, um velhote de traços vincados, olhos claros profundos e sorriso tímido, está defronte a uma plateia partilhando a sua história. Um homem de extrema coragem, um sobrevivente. Filho de pai polaco e mãe lituana, descendente de judeus, Simon fora recolhido da sua casa por militares nazis, juntamente com a sua mãe, e levado para uns campos em Mechelen, onde esperara pela viagem que, pensavam eles, os levariam para campos de trabalho. Na realidade, o comboio onde ele seguia destinava-se a Auschwitz. No dia da partida, a resistência belga, composta por três jovens armados apenas com uma pistola e uma lanterna, pararam o comboio, abriram as portas de um vagão e deram início à fuga de mais de 200 prisioneiros. Simon, empurrado pela mãe para fora do comboio, foi um deles. Ela não.
No meio da plateia, de olhos postos no senhor de voz doce, penso nesta primeira, e talvez única, oportunidade de ver e escutar ao vivo um sobrevivente do Holocausto. Nem consigo imaginar a dor e a solidão de um menino de 11 anos fugindo pelos bosques de Mechelen para sobreviver. Simon conta-nos que foi recolhido por famílias belgas, mantendo-se escondido em casa deles durante os longos 17 meses até ao fim da guerra. Ajudado e alimentado, Simon sobreviveu, mas por dentro algo se partiu irremediavelmente; entre os pesadelos nocturnos e o medo que o impediam de dormir, os ataques de pânico e as crises de choro incontrolável, a guerra foi deixando cicatrizes profundas, como sulcos marcados na alma, aqueles mesmo que o sufocavam e o impediam de falar abertamente sobre este período negro da sua vida ao longo de décadas. Não é fácil partilhar algo assim. Simon Gronowski, ao fim de 70 anos, de olhos brilhantes de lágrimas e discurso pausado, consegue. Diz que perdoou e que acredita na bondade do ser humano. A sua voz calma e a postura humilde mostram que não tem raiva. Mas não conseguiu perdoar Deus. “Se Deus existisse” – diz com firmeza, “isto não teria acontecido”.
Depois de alguns minutos de perguntas, um senhor alto e magro, de olhos grandes redondos e tez negra e brilhante, com menos de 40 anos, levanta-se e fala com tremor na voz. Também ele é um sobrevivente e carrega nos ombros o peso do ódio étnico que ceifou a vida a 1 milhão de pessoas em 3 meses. É um tutsi, perseguido pelos hutus durante o genocídio do Ruanda há 20 anos atrás. Ele conseguiu escapar, sobreviveu. Muitos outros que ele conhecia não. Por isso ele partilha e dá a cara, apesar da dor que sente por cada palavra que profere, como setas envenenadas que lhe dilaceram o coração .
Nota da autora (eu, portanto). Este privilégio de partilhar a sala com dois sobreviventes deste calibre ocorreu numa das minhas recentes visitas à cidade cosmopolita que é Bruxelas. Circunstâncias inesperadas mas oportunas permitiram-me estar lá no dia certo. Provavelmente nunca mais se repetirão. As histórias dos sobreviventes sim, serão repetidas. As vezes que forem precisas.