quarta-feira, 18 de setembro de 2013

Desabafos de uma ex-professora

O último ano

Lembro-me do meu último ano. Foi há 10 anos atrás. No início de Outubro de 2003, o meu pai trouxe-me uma notícia que eu já não esperava. “Foste colocada, com horário completo. Em Peniche.” “Peniche? Mas eu não concorri para Peniche!”, pensei eu instantaneamente. É claro que concorri, não para a escola individualmente, a qual não me lembrava – e bem - de ter colocado no impresso de candidatura, mas para um distrito que se estende desde Castanheira de Pêra, a Norte, até ao Bombarral, a Sul, duas sedes de concelho que distam 160 km uma da outra. Com esta notícia, fiz o que milhares de professores fazem todos os anos: peguei na trouxa e fui apresentar-me ao trabalho a 90 km de distância da minha casa, no período curto e obrigatório de 2 dias, sem ter tido tempo de procurar casa ou de me habituar à ideia da mudança.
Algumas semanas mais tarde, lembro-me de uma colega ter descrito a minha chegada à escola no dia em que me apresentei. Entrei esbaforida pela sala de professores dentro, carregando ao ombro um pequeno saco de viagem escuro onde trazia meia dúzia de roupas, de olhar perdido e confuso mas com ar simpático. A confusão não era para menos; tinha acabado de chegar a Peniche onde começara a trabalhar naquela hora e não tinha onde dormir essa noite. Nem sequer sabia se havia pensões disponíveis e também não tivera tempo para me debruçar seriamente sobre o assunto. Naquela altura não tinha carro e os transportes públicos para percorrer a estrada de regresso a casa eram poucos. Estava literalmente presa a um sítio que não escolhi directamente, mas o qual não podia recusar sob pena de não poder concorrer nos 2 anos seguintes. E chegada à escola, descobri que tinham tirado horas do meu horário completo para darem a outra professora de Geografia, uma residente local, apesar da ilegalidade e da injustiça dessa acção (confirmada depois pelo Ministério), com a qual perderia parte do salário e precioso tempo de serviço.
O início deste meu ano lectivo não augurava nada de bom. Com o passar dos dias, as coisas foram-se compondo e a minha vida de nómada começou a organizar-se em redor de uma escola pobre e cheia de problemas mas simpática, e de uma faixa costeira lindíssima, onde os episódios mais frustrantes se dissipavam nas ondas do mar. Acabou por correr bem, durante os 4 meses que lá estive. 4 meses apenas, porque em Fevereiro de 2004 tomei uma decisão que mudaria a minha vida; rescindi o contrato com a escola e parti para o outro lado do mundo, disposta a começar outro rumo profissional e a deixar este, que antes tanto me fascinava, para trás.

Dez anos depois
Passados 10 anos, as razões que me levaram a desistir do ensino público em Portugal continuam presentes, ou até mais fortes. Não foi o ensinar, preparar as aulas, corrigir centenas de testes ou aturar os miúdos. Não foram as conversas difíceis com os pais ou as reuniões chatas de fim de período. Não foi sequer a frustração de ver o esforço perdido no desinteresse dos alunos ou as más decisões do Conselho Directivo. Não foi nada disso que me levou a mudar. Foi, essencialmente, a falta de opções derivada de um sistema de colocações injusto e de pouca confiança. Ter que concorrer às cegas, sem saber antecipadamente onde há vagas e sem ter a mínima indicação de como será o ano lectivo seguinte, limitando as restantes opções de vida a um “carpe diem” angustiado. Ser obrigada a aceitar algo que não me agrada para não ser penalizada, como um horário minúsculo longe de casa. Fazer contas e perceber que estou a pagar para trabalhar, mas se quero continuar no ensino público em Portugal, não tenho alternativa.

Quantos professores, após 10 anos, continuam a ser levados por esta montanha-russa de emoções, que contrapõem o amor a um trabalho à falta de perspectivas de estabilidade? Sei que a maioria dos meus amigos da faculdade, de onde saí há 11 anos, não foram colocados, e os poucos que foram ou têm horário incompleto ou estão nas ilhas. Os meus amigos têm duas mãos cheias de anos de ansiedade, incerteza, deslocações diárias, frustração e cada vez menos perspectivas de contribuir para um ensino de maior qualidade. Sim, porque todos sabem que, nos dias de hoje, ter 35 alunos numa turma impede o funcionamento produtivo de uma aula e o acompanhamento personalizado exigido pelos desafios do mundo de agora. Um mundo diferente de há 20 anos atrás, quando eu andava na escola, e quando um murro na mesa ou uma chamada de atenção mais enérgica do professor nos punha todos em sentido; e quando o professor era a fonte primária de conhecimento e não havia telemóveis ou internet a competirem pela minha atenção.

Já nos tempos de faculdade, quem estudava para ser professor sabia que, no início da carreira, andaríamos a saltitar de um lado para o outro, até vincular a uma região. Aos 20 e poucos anos até é uma experiência gira, conhece-se um bocadinho mais de Portugal, conhece-se melhor o sistema e escolhe-se depois a região de preferência para ficar. Mas 10 anos é quase um terço da carreira, não é o início. E os professores são os únicos trabalhadores neste país (excepto os recibos verdes e os bolseiros de investigação, que me lembre) que não estão sujeitos à regra dos 3 anos de contrato, após os quais seriam integrados na “empresa” ou dispensados. Não. Os professores podem estar continuamente a contrato e podem ser dispensados após 15 ou 20 anos de serviço, mesmo que esse serviço tenha sido muito bom. A discrepância de critérios não se fica por aqui; a implementação de um exame para entrada na profissão, um princípio que me parece aceitável seguindo o exemplo de Itália (onde quem quer entrar no ensino faz um exame no primeiro ano), é exemplo disso. Parece que os professores em Portugal se esquecem do que aprenderam de um ano para o outro e não ganham experiência com o tempo de serviço, já que terão que repetir o exame todos os anos. Por acaso os advogados ou os técnicos oficiais de contas em Portugal repetem o exame de entrada na respectiva Ordem depois de aprovados? Obviamente que não, porque simplesmente não faz o mínimo sentido.

A liberdade de poder escolher
Não sou contra a mudança, pelo contrário. Quem me conhece sabe que continuo a ter alma de nómada. A verdade é que já fui para muito mais longe do que me mandaram os concursos de professores em Portugal, já vivi a milhares de quilómetros de distância da minha casa e já mudei de local de trabalho várias vezes. Mas fi-lo sempre porque quis e quando quis. Fui para a Austrália sabendo meses antes para onde ia e em que condições. Mudei-me para Itália meses depois de negociar o dia de início de contrato, para poder finalizar todas as tarefas do trabalho que tinha então. Recusei um trabalho na Comissão Europeia em Bruxelas, e isso não impediu que me oferecessem outro no mês seguinte. É esta possibilidade de escolha, de poder dizer “Sim” com tempo para me preparar para a mudança, ou poder dizer “Não” sem me excluírem da lista, que não existe no ensino público em Portugal.

Gostava de dizer aos meus amigos professores e educadores que isto é tudo passageiro, que vale a pena continuar a tentar, que ensinar é uma missão que vai voltar a ser valorizada por quem nos governa e por todas as pessoas deste País. Que o bom senso, a vontade de melhorar a educação em Portugal e a experiência de professores de todo o país vão prevalecer. Gostava. Porque acredito mesmo que a educação oferece a solução para muitos problemas por este mundo fora. Mas olhando para o panorama de agora, acho que vai demorar. Tenho o maior apreço pelos meus amigos, e todos os outros, professores e educadores, que continuam a labutar por um trabalho e um sistema de ensino que, neste momento, tão pouco tem para lhes dar em troca. Mas também tenho grande consideração por quem escolhe diferente e diz “Basta”, decidindo trilhar outro caminho e pôr as suas capacidades de professor, a sua versatilidade e a sua experiência pessoal ao serviço de outras pessoas, noutros trabalhos. Ganha-se, pelo menos, a liberdade de controlar a sua vida e não andar ao sabor de um sistema que muda constantemente as regras do jogo, um sistema que exclui a vertente humana do trabalho de professor, afinal a mais importante de todas.

sexta-feira, 17 de maio de 2013

Sobreviventes - celebrando a libertação

Em tempo de celebração pela libertação do campo de concentração de Auschwitz-Birkenau, assinalado na terça-feira, recordo uma experiência marcante num encontro que tive com um sobrevivente do Holocausto. Na altura da guerra ele tinha 11 anos, no dia deste encontro há dois anos tinha 81. Lembro-me muito bem dos seus olhos azuis profundos, marejados de uma tristeza dolorosa. O seu olhar vagueava pela sala enquanto contava alguns episódios da sua vida de prisioneiro, primeiro, e de fugitivo, depois. Simon não chegou a ir para o campo de concentração, graças à coragem de um punhado de jovens belgas, mas isso não impediu que as "feridas de guerra" o atingissem, onde se inclui a perda da mãe e da irmã nos campos. 

Depois deste encontro, espicaçada pela curiosidade de saber mais sobre as experiências desta guerra, li o livro do italiano Primo Levi, "Se isto é um Homem", que narra na primeira pessoa - a pessoa de Levi - os meses que passou no campo de Auschwitz e a luta cruel pela sobrevivência quando até a dignidade humana lhe foi roubada. Não é leitura de cabeceira antes de dormir, nem para estômagos fracos. É uma história muito difícil e violenta. Mas é real. E também por isso vale a pena, para podermos celebrar todos os dias a libertação dos campos de concentração.

***********************************************************************************************

19 de Abril de 1943. Manhã cedo em Mechelen, Bélgica. Um comboio parte com mais de 1600 passageiros a bordo. Simon Gronowski, de 11 anos de idade, está sentadose junto 1200 passageiros a bordo junto à sua mãe. Subitamente o comboio pára e ouve-se o desferrolhar pesado das portas. Ouvem-se tiros e a luz trémula do dia entra no compartimento. No meio da confusão gerada, a mãe de Simon empurra-o para fora do vagão. Simon salta sem vontade, esperando que a mãe o siga. Outras pessoas saltam de outros vagões, vozes de pânico ressoam no ar. Homens de fatos cinzentos aproximam-se a correr gritando. Simon não sabe o que fazer, faz apenas o que o instinto lhe pede: foge, correndo até não poder mais.

70 anos depois, Simon Gronowski, um velhote de traços vincados, olhos claros profundos e sorriso tímido, está defronte a uma plateia partilhando a sua história. Um homem de extrema coragem, um sobrevivente. Filho de pai polaco e mãe lituana, descendente de judeus, Simon fora recolhido da sua casa por militares nazis, juntamente com a sua mãe, e levado para uns campos em Mechelen, onde esperara pela viagem que, pensavam eles, os levariam para campos de trabalho. Na realidade, o comboio onde ele seguia destinava-se a Auschwitz. No dia da partida, a resistência belga, composta por três jovens armados apenas com uma pistola e uma lanterna, pararam o comboio, abriram as portas de um vagão e deram início à fuga de mais de 200 prisioneiros. Simon, empurrado pela mãe para fora do comboio, foi um deles. Ela não.
No meio da plateia, de olhos postos no senhor de voz doce, penso nesta primeira, e talvez única, oportunidade de ver e escutar ao vivo um sobrevivente do Holocausto. Nem consigo imaginar a dor e a solidão de um menino de 11 anos fugindo pelos bosques de Mechelen para sobreviver. Simon conta-nos que foi recolhido por famílias belgas, mantendo-se escondido em casa deles durante os longos 17 meses até ao fim da guerra. Ajudado e alimentado, Simon sobreviveu, mas por dentro algo se partiu irremediavelmente; entre os pesadelos nocturnos e o medo que o impediam de dormir, os ataques de pânico e as crises de choro incontrolável, a guerra foi deixando cicatrizes profundas, como sulcos marcados na alma, aqueles mesmo que o sufocavam e o impediam de falar abertamente sobre este período negro da sua vida ao longo de décadas. Não é fácil partilhar algo assim. Simon Gronowski, ao fim de 70 anos, de olhos brilhantes de lágrimas e discurso pausado, consegue. Diz que perdoou e que acredita na bondade do ser humano. A sua voz calma e a postura humilde mostram que não tem raiva. Mas não conseguiu perdoar Deus. “Se Deus existisse” – diz com firmeza, “isto não teria acontecido”.
Depois de alguns minutos de perguntas, um senhor alto e magro, de olhos grandes redondos e tez negra e brilhante, com menos de 40 anos, levanta-se e fala com tremor na voz. Também ele é um sobrevivente e carrega nos ombros o peso do ódio étnico que ceifou a vida a 1 milhão de pessoas em 3 meses. É um tutsi, perseguido pelos hutus durante o genocídio do Ruanda há 20 anos atrás. Ele conseguiu escapar, sobreviveu. Muitos outros que ele conhecia não. Por isso ele partilha e dá a cara, apesar da dor que sente por cada palavra que profere, como setas envenenadas que lhe dilaceram o coração .
Nota da autora (eu, portanto). Este privilégio de partilhar a sala com dois sobreviventes deste calibre ocorreu numa das minhas recentes visitas à cidade cosmopolita que é Bruxelas. Circunstâncias inesperadas mas oportunas permitiram-me estar lá no dia certo. Provavelmente nunca mais se repetirão. As histórias dos sobreviventes sim, serão repetidas. As vezes que forem precisas.

sexta-feira, 15 de fevereiro de 2013

Quando o que vemos é tudo o que existe

deixamos de ter perspectiva. Quando ficamos demasiado tempo no mesmo sítio ou fazemos durante muito tempo as coisas da mesma maneira, começamos a acreditar que aquilo que vemos - que não é muito, é o mundo inteiro. E quando pensamos que o mundo não vai além dos confins da nossa própria bolha, perdemos a capacidade de relativizar. Assumimos que os nossos problemas são os piores que existem, verdadeiras tragédias que nos impedem de tomar atenção às situações dos outros e às soluções que nos oferecem.
Por isso é fundamental sair. Ver, experimentar, sentir. Rebentar a bolha que nos limita e criar outra, uma que abarca mais mundo e que nos deixa ver mais longe, ao mesmo tempo sólida e transparente.  Por isso viajar é tão bom, para tocar outras perspectivas e saborear outras visões da vida. Não é preciso ir ao outro lado do mundo, nem sequer apanhar um avião. Às vezes basta calcorrear o caminho de sempre com a mente aberta aos pormenores, chegar ao sítio do costume por um percurso diverso, olhar aquela pessoa que nos acompanha todos os dias com a curiosidade de uma criança. E as tragédias que nos atormentam acabam por encolher para a sua devida dimensão.
 
"Aquilo que vemos todos os dias transforma-se aos poucos em tudo o que conseguimos imaginar e, já se sabe, aquilo que conseguimos imaginar é tudo o que existe. Se aquilo que nos rodeia é tudo o que existe, os nossos problemas passam a ser os maiores que existem, não importa a real proporção da sua importância. O nosso mundo passa a ser o mundo inteiro (...) Por isso faz tanta falta ir."
 
José Luís Peixoto, VM Fevereiro 2013
 
 

quarta-feira, 23 de janeiro de 2013

Almas esmagadas

  
 
Entro na sala escura, pisando o chão de pedra gasta e lama encrustada. O cheiro intenso a humidade atinge-me como um murro no estômago. A porta atrás de mim fecha-se. A escuridão aumenta, uma luz parca entra por um buraco alto na parede. Distingo um espaço de 12 m2 limitado por paredes grossas de pedra. Sinto os murmúrios do tempo, vozes de homens que ecoam nas paredes, ao mesmo tempo agressivas e subjugadas. Neste espaço exíguo coexistiram 150 homens, acorrentados uns aos outros enquanto os seus carrascos os preparavam para o transporte até ao outro lado do Oceano. Mercadoria viva. Escravos. Amarrados aos pares, eram levados por um túnel e empurrados para os navios de carga através da porta sem regresso. Sim, esta porta existe. Quem por lá passasse sabia que não mais regressaria. Muitos foram os que não chegaram a passar por ela, sucumbindo à fome, à doença, à humilhação, à violência. Arrancados à força das suas terras por braços europeus ou tribos rivais, milhares de homens e mulheres africanas viram a sua vida reduzida a cinzas, as suas almas esmagadas e os seus corpos – escuros por natureza - dominados às mãos dos colonos.
 
 
Foi assim em Cape Coast durante séculos. Construída pelos ingleses no séc. XVI, esta fortaleza alva erguida à beira-mar onde palmeiras esguias se alinham, aparenta tranquilidade e segurança. Puro engano. Durante séculos este local recebeu escravos, manteve-os em cativeiro, maltratou-os, entregou-os à morte quando não se submetiam ou não resistiam e embarcou-os para as Américas. As marcas permanecem: os sulcos na parede da sala escura, onde os mais rebeldes eram deixados a morrer sem água, comida ou luz, esculpidos com os grilhões em momentos de desespero; as bolas de ferro no chão do pátio onde prendiam dias a fio as mulheres que se recusavam a dormir com o governador; as portas pesadas das masmorras, cubículos de pedra fria onde se amontoavam pessoas como gado, enquanto o governador passeava nos seus aposentos avantajados escolhendo as escravas que iria violar nessa noite.
 
O forte de Elmina
Vista do forte de Elmina sobre o Atlântico
 
 
 
 A história repete-se ao longo da costa do Gana, onde outras tantas fortalezas se erguem, alheias ao sofrimento que representam. O estilo arquitectónico é-me algo familiar; foram os portugueses os primeiros a construir aqui um entreposto, inicialmente para trocas e armazenagem de ouro e outros bens: São Jorge da Mina – a Elmina de hoje. O retrato do Infante D. Henrique, fascinado por África e grande impulsionador da expansão portuguesa, aparece escarrapachado no museu do forte de Cape Coast. Do fundo do meu peito sinto uma vibração ardente a subir de rompante: são a vergonha e a mágoa de partilhar ADN com pessoas que contribuíram para esta incompreensível crueldade.
 
Elmina hoje
A paisagem em redor de Elmina é bonita, um caos tropical de casas amontoadas, gente, cores e movimento, lado a lado com a passividade do Atlântico. Os canhões perfilados geometricamente nos rebordos do forte montam um cenário engraçado e a brisa agitada vinda do mar baixa o calor húmido para níveis suportáveis. No final da visita Sheryl, a jovem e simpática guia, sintetiza com sabedoria aquilo que permite à humanidade sobreviver a estas cicatrizes: o perdão já foi dado a esta escravatura, mas apesar disso é nossa responsabilidade continuar a passar a mensagem para evitar que outras formas de escravatura persistam. Por isso no chão das antigas masmorras vêem-se hoje coroas de flores trazidas por visitantes, em homenagem a quem sofreu a escravatura. Grupos de turistas afro-americanos cantam melodias à luz das velas nas masmorras ao lado da porta sem regresso, por onde passaram um dia os seus bisavós. E turistas curiosos deixam-se fechar nas salas de pedra fria onde marcas profundas destes tempos continuam gravadas.
 
 

 

segunda-feira, 14 de janeiro de 2013

Haja paciência!

Kumasi, 11 de Janeiro de 2013

Se queremos testar a nossa paciência, vamos a África.
Os modos educados dos africanos vêm acompanhados de uma desesperante lentidão de serviço e de uma irritante calma no discurso. São 11h00, estou no aeroporto de Kumasi desde as 7h30 da manhã e o voo marcado para as 9h10 está atrasadíssimo. Eram 10h15 quando anunciaram um atraso de mais 2 horas, devido a um nevoeiro cerrado e pouca visibilidade; a mim parece-me um daqueles dias de praia no verão, que amanhece com os pingos do nevoeiro a cair e que depois se torna um daqueles dias solarengos de 35º. Para quem já voou com neve e tempestade, um nevoeiro não parece coisa muito ruim.
Quando me dirijo ao balcão de informações quase a perder a paciência, o senhor de camisa branca, com ar preocupado e telemóvel na mão, diz-me calmamente: “2 hours are just around the corner, don’t go anywhere”. E acrescenta “you know, life is the most important thing, it is too dangerous to land”. Contra factos assim não há argumentos.
Regresso à sala de espera do aeroporto, pronta para um pequeno-almoço tardio e, claro está, demorado, onde partilho a mesa com estranhos que comem arroz e peixe frito às 11h da manhã. Vejo pela primeira vez uma mulher de batina, daquelas que os padres usavam antigamente, longas e pretas, com parte do colarinho branco bem apertado ao pescoço à vista. Entretanto chega Priscilla, uma jovem de origem ganesa nascida na Alemanha, de traços suaves e pele luminosa, cabelo longo entrançado e vestido cor-de-rosa escuro, que se senta educadamente na minha mesa. Metemos conversa. Diz-me que veio visitar os avós e um tio, depois de 10 anos de ausência. Os voos são muito caros para vir com frequência. Lá em Hamburgo onde mora, tem uma amiga portuguesa, de Alverca. Falo-lhe da minha experiência no Gana, que é terceira vez que cá venho e que gosto muito do país e da amabilidade das pessoas. Conto-lhe a história dos 5 filhos do agricultor que me parecia nunca terem visto antes uma “senhora branca” e repetiam continuamente “Obroni, obroni”, enquanto me fixavam de sorriso tímido e olhos curiosos. Priscilla conta-me que teve a mesma experiência, ao contrário: quando esteve na Polónia, a família com quem ela ficou nunca tinha visto uma pessoa preta e queriam tocar-lhe nos braços, como se precisassem de confirmar que ela era real.
São 12h30. Através de um microfone rouco anunciam finalmente a chegada do avião que, espero, me levará em segurança para Acra. Foi uma manhã longa e tive que usar várias doses da minha paciência que naturalmente, talvez pelo signo irrequieto que me rege ou pela genética, não é muita. Mas vou aprendendo a largá-la aos bocadinhos e a manter a dose necessária de reserva para situações onde já sei que a pressa me impedirá de obter o que preciso. Haja paciência, bom humor e simpatia e qualquer situação aborrecida em África se poderá tornar numa experiência digna de registo. Como esta.

“Teach at the beach”

Chegou como turista. Depois foi ficando como expatriado. Apaixonou-se por aquela praia ganesa na costa do Atlântico e lá se instalou. Montou uma escola de surf, onde recebia miúdos pobres na sala de aula feita de areia e de maresia. Uma noite, resolveu pagar um jantar aos seus alunos e levou-os a um restaurante. Sentados à mesa, com os seus sorrisos rasgados, o empregado perguntou-lhes o que queriam comer. Cabisbaixos, com ar de vergonha e dúvida, nenhum miúdo abriu a boca. O expatriado insistiu: “Podem escolher o que quiserem”. No olhar deles havia agora espanto e curiosidade. O mais corajoso pediu então um prato. Todos os outros – ao todo 12 – pediram a mesma coisa. Naquele momento o expatriado percebeu o que se passava: eles nunca tinham ouvido a pergunta: “o que queres comer?” ou lhes tinha sido pedido que dissessem uma coisa tão simples como “o prato que mais gostas”.

Não é só comida e roupa que falta a estas crianças; estes miúdos não têm escolha, alternativa, possibilidades. Não se recusa nenhum tipo de comida quando esta é escassa e engolem tudo o que lhes dão sem questionar. Dar opinião? O que é isso? Podemos ser nós a escolher o que queremos? Podemos ser outra coisa que não o que nos calha ao acaso? Podemos deixar de ser vendedores na estrada e fazer algo menos arriscado, menos cansativo e que nos encha o coração? Sonho? Isso existe?

"Obroni!"
Esta história verídica contada pela minha colega inglesa preenchia-me a mente e seguia-me juntamente com as crianças da comunidade onde fizemos o trabalho de campo. Quando a “Obroni” (mulher branca) passava, as crianças até então entretidas nos seus jogos ou afazeres domésticos paravam a sua actividade, acenavam energicamente e ofereciam um sorriso de orelha-a-orelha. Eu respondia com um “Hello” comovido. Elas continuavam a sorrir e começavam a seguir-me, enquanto eu dizia “How are you?”. Percebi que a máquina fotográfica que trazia a tiracolo era alvo de olhares e perguntei-lhes se queriam uma foto. Imediatamente se puseram em pose e em segundos dezenas de crianças se meteram à minha frente de sorriso aberto à espera do clique mágico. Tirei dezenas de fotos a estas crianças, que reagiam entusiasticamente quando lhes mostrava o resultado colorido e procuravam o seu reflexo no ecrã minúsculo da minha Canon. Apetecia-me saber mais sobre estas criaturas doces e perguntava-lhes o nome; muitas delas eram muito pequenas e as outras mal falavam inglês, mas as que conseguiam perceber “What is your name’” traduziam para as restantes e debitavam os nomes meio ingleses - meio nativos com uma pronúncia fechada e suave. Quando lhes disse o meu nome repetiram em coro “Sandrrrrrraaaaaa”, como se tivessem acabado de aprender uma palavra nova para o seu vocabulário.






 
No dia seguinte, quando chegámos à comunidade, algumas das crianças lembravam-se de nós e vieram ter connosco, calcando o pó do chão cru e do harmattan que assola a região nesta altura (correntes de vento originárias do deserto do Sara transportando partículas de areia e de pó que tornam a atmosfera opaca e diminuem a temperatura do ar). Em troca de abundantes sorrisos, distribuí o chocolate que trazia por elas, numa azáfama divertida em frente a uma barraca de madeira onde se entrançavam cabelos como arte. Aqui, nesta comunidade pobre onde as condições de vida e os acessos são difíceis, moram criaturas cheias de vida e de alegria, apesar das circunstâncias e da falta de escolhas.

sexta-feira, 11 de janeiro de 2013

Castelos de nuvens

Sábado, 5 de Janeiro de 2013
 
Lisboa. O avião descola em direcção a Este. Sobrevoamos o Parque das Nações, vigiado de perto pela Torre Vasco da Gama, numa elegância altiva. Segundos depois, a asa direita desce e viramos para Sul, na direcção do azul brilhante do Tejo. Subimos aos 3 mil metros, com Lisboa na retaguarda, protegida por uma cúpula de nuvens. A cidade fica envolta numa misteriosa neblina branca, com tufos de algodão-doce aninhados a 2 mil metros de altitude. No mínimo bizarro, num dia tão luminoso como este. Do manto branco de Lisboa surgem os meandros da Ponte Vasco da Gama, serpentando sobre o rio. Em frente, por baixo do avião que ganha altitude, ergue-se um castelo de nuvens altas e fofas, como um muro intransponível. Desta vez não precisamos de atravessar, sobrevoamos.
Durante a viagem, enquanto rumamos para sul atravessando o Trópico de Câncer, temos acesso a um pôr-do-sol diferente, com o astro redondo invisível no meio das faixas de cores quentes estendidas no horizonte. Apetece deixar-se ir naquele calor, estender-se nas nuvens e pairar sobre a terra. O capitão informa que em Acra estão 28º e o coração continua a aquecer. Esta sensação de deixar o frio do Inverno e chegar ao calor dos trópicos em apenas 6 horas de viagem, quando a geografia se sente na pele, é fabulosa!