quarta-feira, 23 de janeiro de 2013

Almas esmagadas

  
 
Entro na sala escura, pisando o chão de pedra gasta e lama encrustada. O cheiro intenso a humidade atinge-me como um murro no estômago. A porta atrás de mim fecha-se. A escuridão aumenta, uma luz parca entra por um buraco alto na parede. Distingo um espaço de 12 m2 limitado por paredes grossas de pedra. Sinto os murmúrios do tempo, vozes de homens que ecoam nas paredes, ao mesmo tempo agressivas e subjugadas. Neste espaço exíguo coexistiram 150 homens, acorrentados uns aos outros enquanto os seus carrascos os preparavam para o transporte até ao outro lado do Oceano. Mercadoria viva. Escravos. Amarrados aos pares, eram levados por um túnel e empurrados para os navios de carga através da porta sem regresso. Sim, esta porta existe. Quem por lá passasse sabia que não mais regressaria. Muitos foram os que não chegaram a passar por ela, sucumbindo à fome, à doença, à humilhação, à violência. Arrancados à força das suas terras por braços europeus ou tribos rivais, milhares de homens e mulheres africanas viram a sua vida reduzida a cinzas, as suas almas esmagadas e os seus corpos – escuros por natureza - dominados às mãos dos colonos.
 
 
Foi assim em Cape Coast durante séculos. Construída pelos ingleses no séc. XVI, esta fortaleza alva erguida à beira-mar onde palmeiras esguias se alinham, aparenta tranquilidade e segurança. Puro engano. Durante séculos este local recebeu escravos, manteve-os em cativeiro, maltratou-os, entregou-os à morte quando não se submetiam ou não resistiam e embarcou-os para as Américas. As marcas permanecem: os sulcos na parede da sala escura, onde os mais rebeldes eram deixados a morrer sem água, comida ou luz, esculpidos com os grilhões em momentos de desespero; as bolas de ferro no chão do pátio onde prendiam dias a fio as mulheres que se recusavam a dormir com o governador; as portas pesadas das masmorras, cubículos de pedra fria onde se amontoavam pessoas como gado, enquanto o governador passeava nos seus aposentos avantajados escolhendo as escravas que iria violar nessa noite.
 
O forte de Elmina
Vista do forte de Elmina sobre o Atlântico
 
 
 
 A história repete-se ao longo da costa do Gana, onde outras tantas fortalezas se erguem, alheias ao sofrimento que representam. O estilo arquitectónico é-me algo familiar; foram os portugueses os primeiros a construir aqui um entreposto, inicialmente para trocas e armazenagem de ouro e outros bens: São Jorge da Mina – a Elmina de hoje. O retrato do Infante D. Henrique, fascinado por África e grande impulsionador da expansão portuguesa, aparece escarrapachado no museu do forte de Cape Coast. Do fundo do meu peito sinto uma vibração ardente a subir de rompante: são a vergonha e a mágoa de partilhar ADN com pessoas que contribuíram para esta incompreensível crueldade.
 
Elmina hoje
A paisagem em redor de Elmina é bonita, um caos tropical de casas amontoadas, gente, cores e movimento, lado a lado com a passividade do Atlântico. Os canhões perfilados geometricamente nos rebordos do forte montam um cenário engraçado e a brisa agitada vinda do mar baixa o calor húmido para níveis suportáveis. No final da visita Sheryl, a jovem e simpática guia, sintetiza com sabedoria aquilo que permite à humanidade sobreviver a estas cicatrizes: o perdão já foi dado a esta escravatura, mas apesar disso é nossa responsabilidade continuar a passar a mensagem para evitar que outras formas de escravatura persistam. Por isso no chão das antigas masmorras vêem-se hoje coroas de flores trazidas por visitantes, em homenagem a quem sofreu a escravatura. Grupos de turistas afro-americanos cantam melodias à luz das velas nas masmorras ao lado da porta sem regresso, por onde passaram um dia os seus bisavós. E turistas curiosos deixam-se fechar nas salas de pedra fria onde marcas profundas destes tempos continuam gravadas.
 
 

 

2 comentários: