segunda-feira, 24 de novembro de 2014

Fofinhos e quentinhos

A mesa centenária que pertencia aos meus bisavós já está preparada; flocos brancos de farinha dispersam-se pelo tampo verde desgastado pelo uso. Na bancada ao lado, a minha irmã começa o trabalho em série: polvilha as mãos de farinha, rebola a massa nas mãos, acrescenta algumas nozes, constrói a forma de um bolinho e pousa-o na mesa centenária. Depois chego eu: pincelo a pepita de massa com ovo e dou um corte em cruz no topo do recém-erguido bolinho.



Encostado à parede, com mãos nos bolsos e de boina enfiada na cabeça, o meu avô aprecia o frenesim das três mulheres que ali rodopiam, e sorri quando a minha avó, com um braçado de vides nas mãos, o manda ir dar uma volta. Ela lamenta-se do cansaço, da trabalheira que o bolinho dá, enquanto empurra as vides para o forno em cúpula, feito de tijolos que mudam de cor. Os 75 anos de sabedoria de bolinho que a minha avó traz nas mãos encarquilhadas, dão-lhe autoridade para ralhar com quem quiser. Todos os anos diz que é a última vez que faz bolinhos, que já está velha para estas coisas. Mas na pequena “casa do forno” dos meus avós, a tradição continua a repetir-se; o cheiro adocicado a anis (da erva-doce) e o aroma leve do limão erguem-se neste espaço durante um dia, em preparação para o 1 de Novembro.

Quando eu era criança, era um dos dias mais esperados do ano; logo de manhã cedo, eu, os meus irmãos e alguns amigos saíamos em grupo e batíamos a todas as portas da vizinhança – alargada naquele dia para alguns quilómetros de distância de casa, até onde as pernas aguentassem. 
Anunciávamos a nossa chegada com as vozes, ditando a lengalenga apropriada: “Ó tia, dá Bolinho?”. E do outro lado da porta aparecia o vizinho com a recompensa (senão levava “uma tranca no focinho”): moedas de 20 ou 50 escudos, rebuçados coloridos, chocolates de vários tamanhos, bolos com passas e canela, e às vezes até mãos cheias de tremoços. O saco de tecido feito pela mãe abria-se instantaneamente, e o sorriso também. Andávamos o dia inteiro nisto, competindo pelo saco mais cheio que éramos obrigados a despejar em incursões rápidas a casa, que serviam também para assegurar à mãe que ainda não estávamos nada cansados (mentira, queríamos era mais rebuçados!).

Ao longo da minha infância, pedi muitos bolinhos, até que aos 11 anos percebi que já era demasiado crescida para andar a pedir o bolinho. Ainda aproveitei alguns anos como acompanhante dos meus irmãos mais novos, mas entretanto passei para o outro lado da porta. Dar o bolinho também me agradava e acabava por ser uma forma de acompanhar o crescimento das famílias da terra, bem representadas pelas crianças que me ditavam agora a ladainha.
Nos últimos anos, a ladainha tornou-se um sussurro. Este ano consegui contar pelos dedos das mãos as crianças que nos apareceram à porta. Raramente sozinhas, acompanhadas e motivadas pelos pais que, no seu tempo, calcorreavam as mesmas ruelas de saco às costas. Tentam manter a tradição, que se vê definhar a passos largos. Porque há menos crianças, mas há mais perigos, porque o 1 de novembro já não é feriado e os finados já não precisam das nossas oferendas.

Na pequena casa do forno, o cheiro a bolo quentinho invade o ar; os bolinhos cresceram, acastanharam, ficaram brilhantes. O meu avô, com o seu ar pacato, espera junto à porta para provar a primeira fornada. Comemos todos juntos o primeiro bolinho, partilhando o sabor da massa trabalhada em conjunto seguindo uma receita centenária. E desejando que, para o ano, estejamos todos aqui para fazer mais.


Fofinhos e quentinhos à espera de sairem do forno

sábado, 4 de outubro de 2014

Rendi-me ao feitiço


Recebi o feitiço de braços abertos. Desfolhei a última página do livro de Miguel Real e, tal como as personagens do livro, representantes de uma linhagem histórica de portugueses na Índia, também eu me enfeiticei, pelo livro e pela Índia. Do livro, foi de certeza pela escrita ágil e ritmada de Miguel, pela quebra das regras gramaticais que representa tão bem a vida vivida num fôlego, como acontece naquele país, pelo retrato dos fragmentos da Idade dos Descobrimentos e do tempo de Salazar, das perseguições da Inquisição em ambos os cantos do mundo, pelo vislumbre inteligente dos paradoxos da cultura indiana e das contradições mesquinhas da portuguesa, por incitar o meu desejo de não parar de ler e por estimular a vontade de regressar a esse país que seduz. Da Índia, pelas cores dos saris esvoaçantes, o brilho das peles curtidas pelo sol, os cheiros da miséria misturados com as especiarias, os sabores quentes da comida variada, o sorriso fácil em cabeças meneantes, as peles macias amendoadas, pela atitude submissiva de quem sabe desde sempre que o destino está traçado. 
E o meu destino foi, desde sempre, conhecer a Índia. Pelos livros, pelas viagens e pelas pessoas. 


quarta-feira, 16 de julho de 2014

A beleza das coisas frágeis



A história começa pelo fim. O fim de uma vida. A morte da personagem “pai” desencadeia o reencontro familiar entre os irmãos e a mãe, almas separadas por mágoas, por más decisões, pela solidão e por mal-entendidos. Uma família ganesa-nigeriana emigrada nos EUA a quem faltam as raízes e a compreensão do seu próprio passado, e que, apesar de todas as tentativas da família, este passado intromete-se descaradamente nas suas vidas e nas suas escolhas.

A morte inesperada do pai obriga-os a enfrentar a fragilidade das suas próprias vidas, enquanto indivíduos e enquanto família, refletida na falta de confiança, nas doenças psicológicas, no incumprimento de expectativas e, essencialmente, na falta de comunicação entre pessoas que cresceram juntas e que, sem perceberem bem porquê, foram forçadas (ou escolheram) a abandonar-se. Até ao novo reencontro, de pessoas, de mágoas e de muitas palavras por dizer, na beleza de sentir e de pensar enquanto  ser humano. 

Taiye escreve de forma dinâmica e vívida; a história cresce a um ritmo tão intenso que quase me deixava sem fôlego, como se uma multidão me estivesse a empurrar para o fim da estrada. À medida que me agarrava ao fio condutor da história desta família e queria saber mais, os segredos eram desvendados às camadas, sem pressa, imitando o próprio ritmo incontrolável da vida humana. Uma boa companhia para os finais do dia. 

terça-feira, 24 de junho de 2014

Em busca das cores

Era imediato. Quando me falavam desta cidade, era isto que me vinha à cabeça: cinzento. As poucas vezes que passei as pontes sobre o Douro parecia ver um véu espesso a impedir a passagem de luz, mergulhando a cidade numa escuridão leve. Desta vez, sacudi as ideias feitas e coloquei o meu olhar mais atento. Cinzento? Nada disso. O Porto vibra de cor.

O céu nublado e os chuviscos intermitentes não auguravam um dia fácil. A ideia da atmosfera cinzenta colava-se na minha mente. E por ser a terceira vez que percorria o centro do Porto em busca de um lugar para estacionar, o cinza adensava-se cada vez mais. Decidida a não me deixar vencer pelo mau-humor meteorológico, dou mais uma volta ao quarteirão e tenho sorte. O Sr. Fernando, de barba grisalha e ar maltrapilho, mas de certeza enviado pelos anjos, tinha um lugar reservado para mim. Agradeceu amavelmente a gorjeta, enquanto apontava para a fachada branca da reitoria da Universidade, sobranceira à rua das Carmelitas, onde ele costumava cirandar.

Foi nesta rua que comecei a volta pela cidade, seguindo em direcção à Cadeia da Relação. De soslaio reparo na brancura da Igreja dos Clérigos, debruada de pedra, antes de atravessar as abóbadas da cadeia, actualmente a morada do Centro Português de Fotografia. Também aqui me deparo com o Branco, castigado por um amor de perdição. Camilo (Castelo Branco) abraçou estas paredes roídas pelo tempo, enquanto criava o destino de Simão e Teresa. Respiro as últimas partículas das memórias que por ali flutuam e sigo por um destino diferente, em direcção à Vitória.

segunda-feira, 16 de junho de 2014

Cisnes selvagens - e como Mao moldou um povo

No início do século XX, numa área rural de um país asiático, uma menina de 2 anos é submetida a uma antiga tradição que, supostamente, lhe garante um casamento. A primeira coisa que a família do noivo analisava era se a pretensa noiva tinha os pés do tamanho adequado, ou seja, se seriam “lírios dourados com 8 centímetros”. Minúsculos, portanto. Para terem este tamanho mini, os ossos dos pés das meninas eram partidos e os pés eram continuamente enfaixados com longas tiras de tecido, para evitar que os ossos voltassem ao lugar.












Há uns bons anos atrás, uma amiga partilhou comigo esta pequena história de um livro que acabara de ler. Seguindo o seu conselho já antigo, e também por curiosidade por esta cultura milenária, lancei-me com entusiasmo às mais de 500 páginas deste livro, tão poeticamente chamado de “Cisnes Selvagens”. Estes “cisnes” são três mulheres: a autora do livro (Jung Chang), a sua mãe e a sua avó. Contado na primeira pessoa, este livro não é um mero retrato familiar; é um retrato da China e da sua história recente, e uma descrição vívida de como a cultura e a política – e a megalomania de uma minoria - podem influenciar as mais pequenas opções de seres humanos comuns.


A menina de 2 anos que mencionei há pouco é a avó de Jung. Oferecida pelo pai para ser concubina de um general, a troco de uma posição laboral influente, vê-se obrigada a fugir com a sua filha para a poder manter consigo. A sua filha – a mãe de Jung – torna-se membro do Partido Comunista e dedica a sua vida ao Partido e a Mao (Tse-Tung) que, dependendo dos seus humores e segundas intenções, tanto a respeita como directora de um instituto como a persegue, aprisiona e tortura. Jung também sofre com as histerias de Mao e é enviada para as montanhas para aprender com os camponeses e ser reeducada através do trabalho árduo.

quarta-feira, 12 de março de 2014

Mãe, arranja-me um marido


Nascida há 28 anos atrás, K. é uma indiana que vive em Bombaim. Trabalhadora autónoma e eficaz, ergue-se no mundo do marketing de forma convincente, o que lhe permite a independência financeira. Criada no seio de uma família católica oriunda do sul da Índia, K. divide-se entre as obrigações laborais e as tarefas voluntárias na Igreja perto de casa, onde toca órgão e ensaia crianças. Aos 28 anos, K. é uma mulher jovem, madura, autónoma e… solteira. Após uma relação especialmente difícil com um homem hindu, K. chega um dia a casa e diz: “Mãe, arranja-me um marido, porque eu sozinha não consigo”.

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Recordei-me desta história de K. ao deparar-me com uma notícia recente no site da BBC (http://www.bbc.com/news/magazine-26341350). Num relato honesto e pessoal, uma indiana de 28 anos fala da pressão social que sente por ser solteira e das perguntas imediatas e inconvenientes que aparecem quando não lhe vêem uma aliança no dedo (“Não conseguiste arranjar ninguém até agora?”), ou das dificuldades acrescidas com o arrendamento de uma casa sem uma figura masculina ao lado. É o estigma social do solteiro, que se dispersa pelo mundo inteiro (embora a níveis diferentes). Perante as dúvidas e as dificuldades destas mulheres, interrogo-me se uma pessoa solteira tem menos valor por isso ou se o contributo que dá ao mundo é menor por estar sozinha. Pergunto-me se o amor tem data de validade. E penso naquelas relações que, seguindo as regras implícitas da sociedade, acabam por destruir o respeito e a dignidade das pessoas que delas fazem parte.

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Ninguém gosta de ficar sozinho. Somos seres sociais, colectivos, esculpidos para ter companhia. Para alguns, os encontros com o outro são mais fáceis e fluem naturalmente; para outros, as colisões são constantes. Quem, nalgum ponto da sua vida, já teve que apanhar os pedaços partidos do seu coração, sabe do que falo. Todas são experiências válidas, importantes para moldar o nosso percurso de vida, mesmo que nos deixem a alma em ruínas. Na verdade, os solteiros, como os casados, têm trabalho, casa para manter, contas para pagar, família para cuidar. Com uma grande diferença: têm que fazer tudo isto sozinhos. E por isso pergunto-me se, em vez de questionarem a rapariga indiana sobre a sua capacidade de arranjar um marido, não seria mais justo oferecer-lhe ajuda e elogiá-la pela sua coragem de enfrentar as peripécias do dia sozinha.  

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A última vez que vi a K. ela já estava casada. O seu pedido foi atendido pelos pais, que lhe arranjaram um homem compatível, segundo as estrelas, e de boas famílias. Conheceram-se, 6 meses depois estavam noivos, e 6 meses depois casaram. Bastou um ano para a vida de K. dar a volta que ela – e a sua comunidade - desejavam. Durante esse tempo, a sua irmã mais nova preparava o seu casamento com o namorado de longa data, o qual foi obrigada a adiar para não casar antes da irmã mais velha. Os padrões sociais não o permitem.  Uns dias depois do casamento da irmã mais nova, a mãe delas confessa-me aliviada: “Já posso morrer descansada. Casei as minhas duas filhas”, como se tivesse finalmente completado a sua missão de vida. E no final acrescenta: “Agora vou rezar por ti”.