Era imediato. Quando me falavam desta cidade, era isto que me vinha à
cabeça: cinzento. As poucas vezes que passei as pontes sobre o Douro parecia
ver um véu espesso a impedir a passagem de luz, mergulhando a cidade numa
escuridão leve. Desta vez, sacudi as ideias feitas e coloquei o meu olhar mais
atento. Cinzento? Nada disso. O Porto vibra de cor.
O céu nublado e os chuviscos
intermitentes não auguravam um dia fácil. A ideia da atmosfera cinzenta
colava-se na minha mente. E por ser a terceira vez que percorria o centro do
Porto em busca de um lugar para estacionar, o cinza adensava-se cada vez mais.
Decidida a não me deixar vencer pelo mau-humor meteorológico, dou mais uma
volta ao quarteirão e tenho sorte. O Sr. Fernando, de barba grisalha e ar
maltrapilho, mas de certeza enviado pelos anjos, tinha um lugar reservado para
mim. Agradeceu amavelmente a gorjeta, enquanto apontava para a fachada branca
da reitoria da Universidade, sobranceira à rua das Carmelitas, onde ele costumava
cirandar.
Foi nesta rua que comecei a volta
pela cidade, seguindo em direcção à Cadeia da Relação. De soslaio reparo na
brancura da Igreja dos Clérigos, debruada de pedra, antes de atravessar as
abóbadas da cadeia, actualmente a morada do Centro Português de Fotografia.
Também aqui me deparo com o Branco, castigado por um amor de perdição. Camilo
(Castelo Branco) abraçou estas paredes roídas pelo tempo, enquanto criava o
destino de Simão e Teresa. Respiro as últimas partículas das memórias que por
ali flutuam e sigo por um destino diferente, em direcção à Vitória.
Na rua de São Bento da Vitória, paro
num miradouro maltratado, onde o lixo se acumula nos cantos. É pena, porque a
vista encanta. Com o rio aos pés, os telhados vermelhos amontoam-se como
degraus gigantes. Abrigam as paredes amarelas, brancas ou vermelhas das casas
que rodeiam a bucólica Igreja dos Grilos. Nas varandas destas casas, entre a
tinta gasta pelo uso, crescem flores e esvoaçam roupas, acompanhando as gaivotas
que grasnam por cima dos telhados. Como elas, abro as minhas asas e continuo
até à rua de São Miguel, atraída pela silhueta ténue das figuras azuis.
Cravados na parede, estes painéis de azulejo, desbotados pelo tempo, retratam momentos
de vida centenários. Os rebordos enfeitados de amarelo e lilás dão um toque
vivaz à parede do edifício, classificado de interesse público. Na verdade, nem
precisava do estatuto para merecer uma visita, bastava a arte do desenho e da
cor. E estar tão próximo da Ribeira também lhe vale alguns pontos. É para aí
que vou, em busca de outros tons.
A primeira tonalidade que encontro não é nova; no muro da Rua da Vitória, estende-se um graffiti azul, delineando uma mulher sem rosto envolta num manto. Ou um monstro marinho saindo das ondas, não posso garantir. Do azul estimulante, desse não tenho dúvidas, e isso já me deixa feliz. Pelo menos o suficiente para deslizar pelas pedras escorregadias até à Ribeira, na margem do rio, sem me importar com a ameaça de chuva.
O rio Douro esperava, tranquilo. Nas
suas margens, salpicadas de cadeiras dos cafés, partilham-se histórias e
bebem-se cervejas. O frio cortante de Inverno começava a atacar e também eu, com
o resto do grupo, me rendi à indolência. Olhando para as águas calmas, ouvi a voz
forte de Maurício, um filho da terra espadaúdo, a contar a razão do nome Douro.
Aí percebi porque esperava o rio. À medida que a noite avança de mansinho, os últimos
raios de sol dissolvem-se no rio e imprimem um brilho dourado que se mistura
com as moléculas de água, criando a imagem de “rio de ouro”. Enriquecida com
esta história, entrei no famoso Peter’s, ícone açoriano, pensando por que raio
tinha deixado o véu cinzento tapar-me a cabeça e esconder as cores incríveis
desta cidade. De cinzento, para além da distinta Ponte D. Luís, vi apenas a
barba grisalha do Sr. Fernando, e o seu sorriso amável acabou por me oferecer a
cor mais viva de todas.
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