quinta-feira, 22 de novembro de 2012

Diálogo intercultural

De passeio pela mata de São Domingos de Benfica, depois de alguns passantes nos cumprimentarem:
- Na Finlândia as pessoas desconhecidas em passeio não dizem "Bom dia" umas às outras.

No final de um almoço prolongado e tardio à beira da praia:
 - Na Finlândia a hora do almoço é muito mais curta e não se almoça assim às 4h da tarde.

Depois de 3 dias a dormir numa casa lisboeta sem aquecimento central:
- Agora percebo porque se queixam do frio em Portugal.

Numa passagem diurna pelo Bairro Alto, em frente a uma janela com roupa no estendal:
- Na Finlândia ninguém poria a sua roupa interior a secar na rua, à mostra de todos.


Nada melhor que uma estrangeira simpática e frontal para nos apontar os defeitos e as virtudes!
 

Kumasi, 6-8 de Novembro de 2012

  
 

Um friozinho na barriga

Alvorada. Estou deitada na cama do hotel em Kumasi e ouço o rumor mecânico da ventoinha no tecto misturar-se com o chilrear compassado e estridente de um pássaro na rua. Todos os dias ouço esta melodia desconhecida antes das 6h da manhã e não chego a conhecer o corpo da ave que lhe dá voz. Aqui não preciso do despertador do telemóvel, a luz e o som tropicais bastam. Melhor assim.
Às 7h da manhã estou no portão do hotel à espera da boleia combinada. De calças caqui, camisola fina de manga comprida, botas de montanha, garrafas de água gelada na mochila e uma camada de repelente contra insectos nas poucas partes expostas lembram-me que estou preparada. Naquele momento ainda não sabia bem para quê. Uma ansiedade excitante percorria-me o corpo, como quando pisamos um palco pela primeira vez. Não interessa quantas vezes ensaiámos, chegado o momento da exposição pública um calafrio de nervosismo empurra a adrenalina desde a cabeça até aos pés. A solução é respirar, profundamente, o oxigénio é o inimigo natural desta energia viciante.  
 
O 4x4 chega com os restantes elementos da equipa. Mustapha, o líder, um jovem muçulmano de ar assertivo e confiante que se auto-intitula de “bushman”; Seth, pequeno e ágil como um rapaz de 15 anos e uma memória fotográfica para espécies tropicais; Parkins, um simpático homem anafado e enérgico, de chapéu australiano e com uma amabilidade e dedicação imensas, tanto ao trabalho como à sua família. E eu, uma europeia branquela e novata nestas andanças mas com muita vontade e treinada para resistir. Tinha ensaiado mentalmente todas as situações possíveis, mas na verdade não fazia ideia do que esperar no mato. “The bush” em inglês. Imaginei uma mistura de selva com campos agrícolas, árvores de cacau perfiladas no meio da vegetação frondosa e espontânea. Mas até lá chegar, outros cenários desfilavam aos meus olhos.

Plantação de cacau vista de baixo

 Mercados de estrada
De ambos os lados da estrada amontoavam-se banquinhas de comida. “Kosis”, rolinhos de massa de feijão fritos, acabados de fazer fumegavam à nossa passagem. Às 8h da manhã estava um trânsito infernal e a estrada estava atulhada de carros, parados. Aproveitando os tempos de espera inevitáveis, mulheres de bacias na cabeça vendem banana-pão, sachets de água, pão de forma, “banana-chips”. O carro à nossa frente exibe autocolantes com frases religiosas, "God is love". O de trás também, o "tro-tro" (carrinhas de 10 lugares que servem de autocarro) na faixa ao lado igualmente. Deus também está no trânsito e no comércio de rua.
A vida em África parece desenvolver-se ao longo dos caminhos. É um dos encantos deste continente. As pessoas chegam e partem, outras passam e acabam por se estabelecer, unindo as suas vidas ao movimento incessante das vias de acesso, numa luta contínua pela sobrevivência. Mercados coloridos de fruta, vegetais, sapatos e vestidos alongam-se por quilómetros e enchem as estradas de vivacidade. É numa destas bancas que os meus colegas compram o pequeno-almoço, “porridge” (uma espécie de papas de aveia) vendida em sachets e “kosis” quentinhos.
 

Comércio de rua


No terraço de uma casa vazia, em frente a uma escola primária de janelas sem vidros e sem tinta nas paredes, rendo-me ao sabor denso e salgado dos “kosis” e ganho forças para a jornada que me espera. Será quente, húmida e cansativa, sem dúvida. Começa por uma picada curta até à margem de um rio. Canoas artesanais escavadas de troncos de árvores estão estacionadas à nossa espera. Dizem-me que os crocodilos se escondem a esta hora do dia e falam nos amestrados de Paga que eu devia ir ver (deve ser mesmo verdade!). De botins nos pés, salto para a canoa, sento-me no rebordo e observo a facilidade com que o rapaz da proa a manobra com 7 pessoas dentro e apenas com um ramo desfolhado de palmeira a servir de remo. Chegamos à outra margem em 10 minutos tranquilos. Já do outro lado, andamos 20 minutos a pé por um carreiro lamacento até chegar à primeira plantação.  


Canoas artesanais à beira do rio

“From bean to bar” – do grão à barra de chocolate

À primeira vista, as plantações de cacau assemelham-se a florestas uniformes. As árvores de 3 a 5 metros de altura alinham-se no terreno irregular e formam um canopy cerrado. Temos muita sombra. Frutos amarelos ou avermelhados, sinal de maturidade, pendem dos troncos cinzentos à espera de serem apanhados. Está próximo o dia em que o agricultor recolhe os frutos, parte a casca dura, tira os grãos sacudindo a massa branca que os envolve e os põe a secar durante uns dias, até os ensacar para vender no ponto de distribuição mais próximo. É um trabalho duro. E pouco rentável, sujeito às flutuações dos mercados externos e à imaginação dos especuladores. O elemento fundamental de um chocolate está nas mãos destes agricultores, em campos aninhados na orla da floresta tropical, entre campos de milho e banana-pão, rios com crocodilos e pântanos com serpentes. Aqui e ali avistam-se as copas de outras árvores, que os agricultores mantêm ou plantam para dar sombra ao cacau, para obter outros alimentos ou rendimentos ou para usos medicinais. São essas árvores que contamos, identificamos e medimos, como atributos visíveis da biodiversidade existente nestas plantações. A bem da ciência e, espero, para benefício dos agricultores.
 
Concentrada no trabalho
As cascas do cacau
A meio da tarde, quando a fome aperta, um agricultor de 60 anos trepa agilmente uma laranjeira de 6 metros de altura. Tendo água e sol, não há razão para uma árvore crescer pouco. Laranjas de casca esverdeada começam a cair no chão. Manuseando a catana, o outro agricultor remove a casca exterior e distribui. Aprendo uma nova maneira de comer laranjas: dá-se uma dentada na laranja para abrir um buraco na casca branca que ficou agarrada aos gomos, cospe-se a casca para o chão e espreme-se o sumo directamente para a boca. Depois de horas a percorrer plantações de cacau sob o calor tropical, esta laranja sabe a ouro. Só quando regressamos à cidade, depois do trabalho de campo do dia feito, é que comemos uma refeição decente, nunca antes das 16h. Nas plantações, comemos o que encontramos ou o que nos oferecem: laranjas acabadinhas de apanhar, a substância branca doce e macia que envolve os grãos de cacau, inhame cozido.
 
Cacau a amadurecer
Uma espécie de figueira, com propriedades medicinais
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 

Durante três dias foi assim. Levantar muito cedo, atravessar o trânsito caótico de Kumasi, esperar os agricultores no terraço da casa vazia, receber os olhares curiosos das crianças da escola (para algumas eu era a primeira “oboni” –branca- que viam), ir de picada até às plantações, calçar os botins, percorrer os carreiros lamacentos com a música do telemóvel ligada para afastar as potenciais cobras, percorrer várias vezes as plantações de cacau medindo árvores, comer laranjas descascadas à catanada,  abrigar-se da chuva morna, cumprimentar as mulheres que passavam com quilos de coisas na cabeça e miúdos colados às costas e receber abacates de um agricultor pobre como apreço pela minha resistência. A vida no mato é fascinante.

A vida no mato

terça-feira, 20 de novembro de 2012

4 de Novembro de 2012, no Gana

6h da manhã. Aqui nos trópicos o sol acorda cedo e a luz do dia já invadiu a cidade. O céu nublado traz-me o nervoso miudinho de uma possível viagem de avião turbulenta, entre Acra e Kumasi. O voo dura 45 minutos e afinal é pouco atribulado. Lá em baixo vê-se a orla da cidade capital, espraiada por longos quilómetros em povoações de casebres encavalitados e infindáveis carreiros de terra batida que as unem à floresta como raízes. Depois vem o verde denso e opaco da floresta, coberto por um manto espesso de nuvens formadas pela respiração das plantas tropicais. A seguir aparece lentamente a cidade dourada do Gana, Kumasi, a segunda maior do país. O avião aterra com surpreendente rapidez e saio para as cores garridas e o clima mais suave da capital do reino Ashanti, onde o rei ainda hoje governa.

 Kumasi, a cidade-jardim
“Kumasi lies amid greenery and flowers, on gentle hillsides. It is like a giant botanical garden in which people were allowed to settle. Everything here seems kindly disposed to man - the climate, the vegetation, other people.” Ryszard Kapuscinsky, “The shadow of the sun” (Ébano).

 A primeira vez que viajei para o Gana foi com ele. A sua paixão por África e o seu talento para a escrita transportaram-me para Kumasi ainda antes de eu lá pôr os pés. Kapuscinsky, jornalista polaco fascinado por África, descreveu de maneira precisa e ao mesmo tempo poética esta cidade – e toda a região da África Ocidental por onde andou nos tempos das revoluções independentistas. Em 1958 descreveu Kumasi como a cidade-jardim. Hoje, o título continua a ser merecido e nem o tráfico intenso a retira do seu pedestal.

Às 9h da manhã já o frenesim está instalado, juntamente com um calor abafado. À saída do aeroporto agrupam-se homens a oferecer os seus serviços de táxi. Eu tenho o Khamel à minha espera, cortesia da empresa pela qual visito o país. Jovem, da minha altura, cara redonda e pele luzidia, apresenta-se com um sorriso tímido. Diz-me que é do Norte, da zona da savana, apesar de ter nascido em Kumasi. Aqui as tuas origens são as da tua família, mesmo que tenhas nascido a centenas de quilómetros de distância. 
Tenho o dia livre e acabo por o convencer a levar-me aos locais mais pitorescos de Kumasi. Começamos pelo lago BosonTwi, a 10 km de distância, uma cratera formada pela queda de um meteorito ocupada pelas águas das chuvas e por crianças brincalhonas. No meio do lago visitamos os tanques improvisados de aquacultura delimitados por tábuas e bidões flutuantes, onde tilapia e peixes-gatos, com os seus bigodes longos como os da minha Mikas, se agrupam aos milhares. Regressamos à vila de Abono onde embarcámos e vemos o carro entregue às esfregadelas enérgicas de um miúdo, demasiado magro para tanto vigor. Khamel refila, não pediu para lhe lavarem o carro, mas cede ao olhar tristonho do miúdo e estende-lhe uma gorjeta. Seguimos caminho de jipe meio lavado e com espuma a escorrer pelas rodas. Regressamos à cidade conversando sobre animais selvagens, depois de termos passado por uma cobra estendida no meio da estrada. Aqui há pitão, cascavel, formiga vermelha, aranha venenosa… e até crocodilos amestrados, algures em Paga, que servem de assento a turistas mais afoitos… depois de lhes oferecem um franguinho para o almoço, claro!  
Vistas do lado BosonTwi, Kumasi
Em Kumasi, visitamos o Palácio Real (Manhyia), onde a família real expõe toda a sua riqueza dourada. O banquinho de ouro é a peça central, diz-se que esta peça de ouro maciço caiu do céu directamente para o colo do primeiro rei de Ashanti, e desde então marca o início da vida dos soberanos, como um trono em ponto pequeno. O rei actual, Otumfuo Osei Tutu, governa ao lado da sua mãe, foi ela quem lhe deu a herança. Aqui, neste reino e região, a sociedade é matriarcal e é a linhagem da mãe que dita a passagem do legado. É a mulher que transmite o sangue nas várias gerações, assim como o espólio da família. A constituição ganesa diz que, em caso de morte da mulher, se ela possuía herança de família, passa para os familiares da mulher, mas se era rendimento do casal, então é para o marido e filhos que fica.
A visita ao palácio fica marcada pela investida interessante do guia. A certo ponto pergunta-me “Sabe como conseguir manter um marido? Dando-lhe uma mulher nova a cada 40 dias”. A minha mente desconfiada fez logo as contas à quantidade de mulheres a que os polígamos de Ashanti têm direito. Mas o guia, na sua seriedade engraçada, esclareceu que era a esposa – única e irrepetível - que se devia renovar a cada 40 dias para manter o interesse do homem. Vendo bem as coisas, se tiver que cortar o cabelo ou mudar de estilo de roupa a cada 40 dias, não sei qual é a versão que prefiro.

A última paragem da visita é para um almoço tardio, como é costume por aqui. Peço Fufu, uma massa batida feita de banana-pão (plantain) e mandioca (cassava). Imito Khamel e aventuro-me com as mãos, retirando pedaços de fufu que enrolo com os dedos e molho no estufado de vaca que o acompanha. Dá-me uma certa satisfação deixar os talheres de lado, como se tocar directamente na comida me ligasse à terra onde ela foi produzida. Khamel sorri, aprova a minha tentativa de me integrar, malgrado a cor da minha pele. “Oboni” (branco) sou e aqui sempre serei, neste país tropical colorido e fértil.

segunda-feira, 5 de novembro de 2012

Acra, 3 de Novembro de 2012

“Do  you  speak English?” O senhor sentado ao meu lado no avião meteu conversa; o boné preto enfiado na cabeça, jeans, pólo branco às riscas azuis e ténis a condizer contrastavam com a tez escura de Gabriel, um ganês sediado em Bilbau há 15 anos. Encontrámo-nos no avião em Lisboa com destino a Acra, a capital do Gana, país onde estou a implementar o trabalho de campo nas plantações de cacau. Gabriel conta-me que chegou a trabalhar um ano numa plantação de cacau, quando lhe digo o que vou fazer ao Gana. A simpatia ganiana persegue-o e conversámos grande parte do voo; actualmente desempregado depois da fábrica de lingotes de prata onde trabalhava ter fechado, Gabriel decidiu passar 2 semanas de férias na cidade costeira de onde partiu inicialmente para Modena, na Itália, há quase 2 décadas, onde viviam 2 dos seus irmãos. Depois foi visitar um amigo em Bilbau e, sem planear, foi ficando por Espanha, onde não quer ficar para sempre. “Tenho que pensar bem e preparar as coisas, regressar ao Gana sem trabalho é mau, não serve. Mas quero voltar.”

O voo vai atrasado mas corre sem peripécias. Da janela vejo as fatias coloridas do céu quando se aproxima o pôr-do-sol, emolduradas por tufos de nuvens. Nos trópicos as nuvens abundam, apesar de ser agora estação seca e não haver sinal de chuva. Chegamos a Acra às 10h da noite e estão uns maravilhosos 28 graus! Pedem-me o passaporte 3 vezes antes de chegar ao tapete rolante das bagagens, na última vez o rapaz sorri abertamente e diz-me que o nome Sandra é muito importante para ele. Será a namorada? Uma paixão arrebatadora? Uma mentirinha para se armar em engraçado? Não chego a descobrir, mas alegro-me pelo meu nome ser apreciado também aqui nos trópicos, seja qual for a razão.

O Hotel Esther onde fico alojada fica a 5 minutos do aeroporto, escondido numa rua residencial; tem um ar colonial, de piso térreo e plantas frondosas à porta. No quarto, em cima da secretária de madeira velha, vejo um bloco de notas onde os funcionários apontam as bebidas disponíveis no quarto. Reparo que afinal é um caderno de escola primária, de uma colecção intitulada "Football legends". Na capa surge aos meus olhos a figura jovem de um conhecido jogador português, no auge da sua brilhante carreira no campo. Conseguem adivinhar quem é? Não, não é o Cristiano Ronaldo, ele é muito conhecido e basta dizer que sou portuguesa para o seu nome vir à baila, juntamente com o brilho nos olhos escuros dos jovens africanos. Mas o verdadeiro embaixador de Portugal no mundo na última década é o Luís Figo, figura incontornável do futebol português que encanta crianças e jovens em África e na Ásia; já em 2003 o Figo era o meu conterrâneo mais aclamado na Indonésia quando revelava de onde vinha, enquanto que Xanana Gusmão, que sofreu anos na prisão por defender a independência de Timor-Leste da Indonésia e a aproximação às raízes portuguesas, mal era mencionado. Assim se vê que é o futebol que move o mundo, bem mais do que a política.