6h da manhã. Aqui nos trópicos o
sol acorda cedo e a luz do dia já invadiu a cidade. O céu nublado traz-me o
nervoso miudinho de uma possível viagem de avião turbulenta, entre Acra e
Kumasi. O voo dura 45 minutos e afinal é pouco atribulado. Lá em baixo vê-se a
orla da cidade capital, espraiada por longos quilómetros em povoações de
casebres encavalitados e infindáveis carreiros de terra batida que as unem à
floresta como raízes. Depois vem o verde denso e opaco da floresta, coberto por
um manto espesso de nuvens formadas pela respiração das plantas tropicais. A
seguir aparece lentamente a cidade dourada do Gana, Kumasi, a segunda maior
do país. O avião aterra com surpreendente rapidez e saio para as cores
garridas e o clima mais suave da capital do reino Ashanti, onde o rei ainda
hoje governa.
“Kumasi lies amid
greenery and flowers, on gentle hillsides. It is like a giant botanical garden
in which people were allowed to settle. Everything here seems kindly disposed
to man - the climate, the vegetation, other people.” Ryszard Kapuscinsky, “The
shadow of the sun” (Ébano).
A primeira vez que viajei para o
Gana foi com ele. A sua paixão por África e o seu talento para a escrita
transportaram-me para Kumasi ainda antes de eu lá pôr os pés. Kapuscinsky,
jornalista polaco fascinado por África, descreveu de maneira precisa e ao mesmo
tempo poética esta cidade – e toda a região da África Ocidental por onde andou
nos tempos das revoluções independentistas. Em 1958 descreveu Kumasi como a
cidade-jardim. Hoje, o título continua a ser merecido e nem o tráfico intenso a
retira do seu pedestal.
Às 9h da manhã já o frenesim está
instalado, juntamente com um calor abafado. À saída do aeroporto agrupam-se
homens a oferecer os seus serviços de táxi. Eu tenho o Khamel à minha espera,
cortesia da empresa pela qual visito o país. Jovem, da minha altura, cara
redonda e pele luzidia, apresenta-se com um sorriso tímido. Diz-me que é do
Norte, da zona da savana, apesar de ter nascido em Kumasi. Aqui as tuas origens
são as da tua família, mesmo que tenhas nascido a centenas de quilómetros de
distância.
Tenho o dia livre e acabo por o
convencer a levar-me aos locais mais pitorescos de Kumasi. Começamos pelo lago
BosonTwi, a 10 km de distância, uma cratera formada pela queda de um meteorito
ocupada pelas águas das chuvas e por crianças brincalhonas. No meio do lago visitamos
os tanques improvisados de aquacultura delimitados por tábuas e bidões
flutuantes, onde tilapia e
peixes-gatos, com os seus bigodes longos como os da minha Mikas, se agrupam aos
milhares. Regressamos à vila de Abono onde embarcámos e vemos o carro entregue
às esfregadelas enérgicas de um miúdo, demasiado magro para tanto vigor. Khamel
refila, não pediu para lhe lavarem o carro, mas cede ao olhar tristonho do miúdo
e estende-lhe uma gorjeta. Seguimos caminho de jipe meio lavado e com espuma a
escorrer pelas rodas. Regressamos à cidade conversando sobre animais selvagens,
depois de termos passado por uma cobra estendida no meio da estrada. Aqui há
pitão, cascavel, formiga vermelha, aranha venenosa… e até crocodilos amestrados,
algures em Paga, que servem de assento a turistas mais afoitos… depois de lhes
oferecem um franguinho para o almoço, claro!
Vistas do lado BosonTwi, Kumasi |
Em Kumasi, visitamos o Palácio
Real (Manhyia), onde a família real expõe toda a sua riqueza dourada. O banquinho
de ouro é a peça central, diz-se que esta peça de ouro maciço caiu do céu directamente
para o colo do primeiro rei de Ashanti, e desde então marca o início da vida dos
soberanos, como um trono em ponto pequeno. O rei actual, Otumfuo Osei Tutu,
governa ao lado da sua mãe, foi ela quem lhe deu a herança. Aqui, neste reino e
região, a sociedade é matriarcal e é a linhagem da mãe que dita a passagem do
legado. É a mulher que transmite o sangue nas várias gerações, assim como o
espólio da família. A constituição ganesa diz que, em caso de morte da mulher,
se ela possuía herança de família, passa para os familiares da mulher, mas se
era rendimento do casal, então é para o marido e filhos que fica.
A visita ao palácio fica marcada
pela investida interessante do guia. A certo ponto pergunta-me “Sabe como conseguir
manter um marido? Dando-lhe uma mulher nova a cada 40 dias”. A minha mente
desconfiada fez logo as contas à quantidade de mulheres a que os polígamos de
Ashanti têm direito. Mas o guia, na sua seriedade engraçada, esclareceu que era
a esposa – única e irrepetível - que se devia renovar a cada 40 dias para
manter o interesse do homem. Vendo bem as coisas, se tiver que cortar o cabelo ou
mudar de estilo de roupa a cada 40 dias, não sei qual é a versão que prefiro.
A última paragem da visita é para um almoço tardio, como é costume por aqui. Peço Fufu, uma massa batida feita de banana-pão (plantain) e mandioca (cassava). Imito Khamel e aventuro-me com as mãos, retirando pedaços de fufu que enrolo com os dedos e molho no estufado de vaca que o acompanha. Dá-me uma certa satisfação deixar os talheres de lado, como se tocar directamente na comida me ligasse à terra onde ela foi produzida. Khamel sorri, aprova a minha tentativa de me integrar, malgrado a cor da minha pele. “Oboni” (branco) sou e aqui sempre serei, neste país tropical colorido e fértil.
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