quinta-feira, 22 de novembro de 2012

Kumasi, 6-8 de Novembro de 2012

  
 

Um friozinho na barriga

Alvorada. Estou deitada na cama do hotel em Kumasi e ouço o rumor mecânico da ventoinha no tecto misturar-se com o chilrear compassado e estridente de um pássaro na rua. Todos os dias ouço esta melodia desconhecida antes das 6h da manhã e não chego a conhecer o corpo da ave que lhe dá voz. Aqui não preciso do despertador do telemóvel, a luz e o som tropicais bastam. Melhor assim.
Às 7h da manhã estou no portão do hotel à espera da boleia combinada. De calças caqui, camisola fina de manga comprida, botas de montanha, garrafas de água gelada na mochila e uma camada de repelente contra insectos nas poucas partes expostas lembram-me que estou preparada. Naquele momento ainda não sabia bem para quê. Uma ansiedade excitante percorria-me o corpo, como quando pisamos um palco pela primeira vez. Não interessa quantas vezes ensaiámos, chegado o momento da exposição pública um calafrio de nervosismo empurra a adrenalina desde a cabeça até aos pés. A solução é respirar, profundamente, o oxigénio é o inimigo natural desta energia viciante.  
 
O 4x4 chega com os restantes elementos da equipa. Mustapha, o líder, um jovem muçulmano de ar assertivo e confiante que se auto-intitula de “bushman”; Seth, pequeno e ágil como um rapaz de 15 anos e uma memória fotográfica para espécies tropicais; Parkins, um simpático homem anafado e enérgico, de chapéu australiano e com uma amabilidade e dedicação imensas, tanto ao trabalho como à sua família. E eu, uma europeia branquela e novata nestas andanças mas com muita vontade e treinada para resistir. Tinha ensaiado mentalmente todas as situações possíveis, mas na verdade não fazia ideia do que esperar no mato. “The bush” em inglês. Imaginei uma mistura de selva com campos agrícolas, árvores de cacau perfiladas no meio da vegetação frondosa e espontânea. Mas até lá chegar, outros cenários desfilavam aos meus olhos.

Plantação de cacau vista de baixo

 Mercados de estrada
De ambos os lados da estrada amontoavam-se banquinhas de comida. “Kosis”, rolinhos de massa de feijão fritos, acabados de fazer fumegavam à nossa passagem. Às 8h da manhã estava um trânsito infernal e a estrada estava atulhada de carros, parados. Aproveitando os tempos de espera inevitáveis, mulheres de bacias na cabeça vendem banana-pão, sachets de água, pão de forma, “banana-chips”. O carro à nossa frente exibe autocolantes com frases religiosas, "God is love". O de trás também, o "tro-tro" (carrinhas de 10 lugares que servem de autocarro) na faixa ao lado igualmente. Deus também está no trânsito e no comércio de rua.
A vida em África parece desenvolver-se ao longo dos caminhos. É um dos encantos deste continente. As pessoas chegam e partem, outras passam e acabam por se estabelecer, unindo as suas vidas ao movimento incessante das vias de acesso, numa luta contínua pela sobrevivência. Mercados coloridos de fruta, vegetais, sapatos e vestidos alongam-se por quilómetros e enchem as estradas de vivacidade. É numa destas bancas que os meus colegas compram o pequeno-almoço, “porridge” (uma espécie de papas de aveia) vendida em sachets e “kosis” quentinhos.
 

Comércio de rua


No terraço de uma casa vazia, em frente a uma escola primária de janelas sem vidros e sem tinta nas paredes, rendo-me ao sabor denso e salgado dos “kosis” e ganho forças para a jornada que me espera. Será quente, húmida e cansativa, sem dúvida. Começa por uma picada curta até à margem de um rio. Canoas artesanais escavadas de troncos de árvores estão estacionadas à nossa espera. Dizem-me que os crocodilos se escondem a esta hora do dia e falam nos amestrados de Paga que eu devia ir ver (deve ser mesmo verdade!). De botins nos pés, salto para a canoa, sento-me no rebordo e observo a facilidade com que o rapaz da proa a manobra com 7 pessoas dentro e apenas com um ramo desfolhado de palmeira a servir de remo. Chegamos à outra margem em 10 minutos tranquilos. Já do outro lado, andamos 20 minutos a pé por um carreiro lamacento até chegar à primeira plantação.  


Canoas artesanais à beira do rio

“From bean to bar” – do grão à barra de chocolate

À primeira vista, as plantações de cacau assemelham-se a florestas uniformes. As árvores de 3 a 5 metros de altura alinham-se no terreno irregular e formam um canopy cerrado. Temos muita sombra. Frutos amarelos ou avermelhados, sinal de maturidade, pendem dos troncos cinzentos à espera de serem apanhados. Está próximo o dia em que o agricultor recolhe os frutos, parte a casca dura, tira os grãos sacudindo a massa branca que os envolve e os põe a secar durante uns dias, até os ensacar para vender no ponto de distribuição mais próximo. É um trabalho duro. E pouco rentável, sujeito às flutuações dos mercados externos e à imaginação dos especuladores. O elemento fundamental de um chocolate está nas mãos destes agricultores, em campos aninhados na orla da floresta tropical, entre campos de milho e banana-pão, rios com crocodilos e pântanos com serpentes. Aqui e ali avistam-se as copas de outras árvores, que os agricultores mantêm ou plantam para dar sombra ao cacau, para obter outros alimentos ou rendimentos ou para usos medicinais. São essas árvores que contamos, identificamos e medimos, como atributos visíveis da biodiversidade existente nestas plantações. A bem da ciência e, espero, para benefício dos agricultores.
 
Concentrada no trabalho
As cascas do cacau
A meio da tarde, quando a fome aperta, um agricultor de 60 anos trepa agilmente uma laranjeira de 6 metros de altura. Tendo água e sol, não há razão para uma árvore crescer pouco. Laranjas de casca esverdeada começam a cair no chão. Manuseando a catana, o outro agricultor remove a casca exterior e distribui. Aprendo uma nova maneira de comer laranjas: dá-se uma dentada na laranja para abrir um buraco na casca branca que ficou agarrada aos gomos, cospe-se a casca para o chão e espreme-se o sumo directamente para a boca. Depois de horas a percorrer plantações de cacau sob o calor tropical, esta laranja sabe a ouro. Só quando regressamos à cidade, depois do trabalho de campo do dia feito, é que comemos uma refeição decente, nunca antes das 16h. Nas plantações, comemos o que encontramos ou o que nos oferecem: laranjas acabadinhas de apanhar, a substância branca doce e macia que envolve os grãos de cacau, inhame cozido.
 
Cacau a amadurecer
Uma espécie de figueira, com propriedades medicinais
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 

Durante três dias foi assim. Levantar muito cedo, atravessar o trânsito caótico de Kumasi, esperar os agricultores no terraço da casa vazia, receber os olhares curiosos das crianças da escola (para algumas eu era a primeira “oboni” –branca- que viam), ir de picada até às plantações, calçar os botins, percorrer os carreiros lamacentos com a música do telemóvel ligada para afastar as potenciais cobras, percorrer várias vezes as plantações de cacau medindo árvores, comer laranjas descascadas à catanada,  abrigar-se da chuva morna, cumprimentar as mulheres que passavam com quilos de coisas na cabeça e miúdos colados às costas e receber abacates de um agricultor pobre como apreço pela minha resistência. A vida no mato é fascinante.

A vida no mato

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