90 km. 3 dias a pé. Numa pequena pereginação pessoal em busca da liberdade mental e de coração que tem teimado em escapar-me. Muitos quilómetros nas pernas, às vezes demasiados. Outras nem tanto. Dependia da hora do dia e do descanso anterior. Mas também da disposição com que se enfrentava o caminho, as subidas e descidas íngremes, o solo rijo, as mudanças bruscas do tempo, tal qual um menino caprichoso a ditar as suas vontades. Primeiro chuva, depois sol, logo a seguir um calor árduo. Chuva outra vez. No mesmo dia. Quando os abrigos se distanciavam por largos quilómetros. Valeu-me a roupa impermeável que carreguei às costas e a habilidade de a vestir e despir em poucos minutos, antes que a vontade esmorecesse. Era para continuar, sempre em frente. Independentemente das bolhas nos pés, do cansaço nos músculos, da dor nos ombros, do peso da mochila. Como se faz na vida.
Foram dias de encontro. E de reencontro. Encontro de outros peregrinos que nos cumprimentavam com um doce "Ola, bon camino"; encontro de pessoas diferentes de longe e de mais perto, dispostas a carregar a sua vida às costas durante centenas de quilómetros sem se lamentar. Quando é uma escolha, ponderada ou apaixonada, as lamentações não têm lugar, apenas a constatação das dificuldades que se atravessam e do desejo de as conseguirmos ultrapassar. O reencontro de uma grande amiga, família de coração, depois de meses de separação que só pareciam sê-lo pela quantidade de novidades que tinhamos para partilhar. Em intensidade de sentimento e à-vontade de comunicação era como se estivéssemos estado juntas todos os dias. Reencontro com as coisas básicas do corpo e da mente, aquelas que nos permitem continuar o caminho: comida, descanso, abrigo. Depois de uma caminhada de 30 km, um duche de água quente volta a ser a maior invenção de todos os tempos e o beliche minúsculo do albergue transforma-se num leito matrimonial com colchão de penas.
O esforço físico e o regresso às coisas básicas é uma forma de libertação. Do stress do trabalho, das chatices familiares, das dúvidas pessoais. Esforçando o corpo, a mente é obrigada a focar-se apenas naquilo que lhe permite vencer mais esta etapa e libertar-se de todas as outras coisas que impedem a realização eficiente desta tarefa. A energia tem que ser bem canalizada, não chega para tudo. A nossa visão concentra-se no que está além e deixa de se ocupar com o que ficou atrás. Isso não interessa agora para o caminho, que se faz andando. Sem dar conta, aqueles pensamentos mais pessimistas, aquela perspectiva menos abonatória, aquele problema tacanho que me incomoda para além da sua importância e aquela pessoa que me fez mal e que não quero voltar a ver ou a pensar dissipam-se no ar. Levados por todas aquelas coisas simples que me permitem ultrapassar o desafio do momento, do andar com um objectivo, a passo persistente e equilibrado, sem perder o contacto com aquilo que realmente importa, para o Caminho e para mim. Rumo ao pôr-do-sol no cabo Finisterra, onde o mar começa e a terra acaba, e a uma vida agora celebrada com uma Compostela (diploma de chegada).