A mesa centenária que pertencia
aos meus bisavós já está preparada; flocos brancos de farinha dispersam-se pelo
tampo verde desgastado pelo uso. Na bancada ao lado, a minha irmã começa o
trabalho em série: polvilha as mãos de farinha, rebola a massa nas mãos, acrescenta
algumas nozes, constrói a forma de um bolinho e pousa-o na mesa centenária.
Depois chego eu: pincelo a pepita de massa com ovo e dou um corte em cruz no
topo do recém-erguido bolinho.
Encostado à parede, com mãos nos
bolsos e de boina enfiada na cabeça, o meu avô aprecia o frenesim das três
mulheres que ali rodopiam, e sorri quando a minha avó, com um braçado de vides
nas mãos, o manda ir dar uma volta. Ela lamenta-se do cansaço, da trabalheira que o
bolinho dá, enquanto empurra as vides para o forno em cúpula, feito de tijolos
que mudam de cor. Os 75 anos de sabedoria de bolinho que a minha avó traz nas
mãos encarquilhadas, dão-lhe autoridade para ralhar com quem quiser. Todos os
anos diz que é a última vez que faz bolinhos, que já está velha para estas
coisas. Mas na pequena “casa do forno” dos meus avós, a tradição continua a
repetir-se; o cheiro adocicado a anis (da erva-doce) e o aroma leve do limão
erguem-se neste espaço durante um dia, em preparação para o 1 de Novembro.
Quando eu era criança, era um dos
dias mais esperados do ano; logo de manhã cedo, eu, os meus irmãos e alguns
amigos saíamos em grupo e batíamos a todas as portas da vizinhança – alargada
naquele dia para alguns quilómetros de distância de casa, até onde as pernas
aguentassem.
Anunciávamos a nossa chegada com as vozes, ditando a lengalenga
apropriada: “Ó tia, dá Bolinho?”. E do outro lado da porta aparecia o vizinho
com a recompensa (senão levava “uma tranca no focinho”): moedas de 20 ou 50
escudos, rebuçados coloridos, chocolates de vários tamanhos, bolos com passas e
canela, e às vezes até mãos cheias de tremoços. O saco de tecido feito pela mãe
abria-se instantaneamente, e o sorriso também. Andávamos o dia inteiro nisto,
competindo pelo saco mais cheio que éramos obrigados a despejar em incursões
rápidas a casa, que serviam também para assegurar à mãe que ainda não estávamos
nada cansados (mentira, queríamos era mais rebuçados!).
Ao longo da minha infância, pedi muitos bolinhos, até que aos 11 anos percebi que já era demasiado crescida
para andar a pedir o bolinho. Ainda aproveitei alguns anos como acompanhante
dos meus irmãos mais novos, mas entretanto passei para o outro lado da porta.
Dar o bolinho também me agradava e acabava por ser uma forma de acompanhar o
crescimento das famílias da terra, bem representadas pelas crianças que me
ditavam agora a ladainha.
Nos últimos anos, a ladainha
tornou-se um sussurro. Este ano consegui contar pelos dedos das mãos as
crianças que nos apareceram à porta. Raramente sozinhas, acompanhadas e motivadas
pelos pais que, no seu tempo, calcorreavam as mesmas ruelas de saco às costas.
Tentam manter a tradição, que se vê definhar a passos largos. Porque há menos
crianças, mas há mais perigos, porque o 1 de novembro já não é feriado e os
finados já não precisam das nossas oferendas.
Na pequena casa do forno, o
cheiro a bolo quentinho invade o ar; os bolinhos cresceram, acastanharam,
ficaram brilhantes. O meu avô, com o seu ar pacato, espera junto à porta para
provar a primeira fornada. Comemos todos juntos o primeiro bolinho, partilhando
o sabor da massa trabalhada em conjunto seguindo uma receita centenária. E
desejando que, para o ano, estejamos todos aqui para fazer mais.
Fofinhos e quentinhos à espera de sairem do forno |