quinta-feira, 13 de fevereiro de 2014

"The Golden Child"


Uma família de agricultores de cacau, Suhum
É assim que lhe chamam. "Criança de ouro". Situa-se na África Ocidental, aninhado entre a Costa do Marfim, o Togo e o Burkina Faso, mesmo por baixo daquela barriguinha geográfica à esquerda do continente, virado a sul para o Atlântico. Oficialmente chama-se Gana e é considerado um dos países africanos mais desenvolvidos. Talvez porque a independência se deu cedo, nos finais dos anos 50, e as guerras internas nunca foram obstáculo. Talvez porque os recursos naturais - petróleo incluído - contribuem para um crescimento económico de meter inveja a qualquer país europeu (14% com o petróleo, 7% sem contar o ouro negro). Eu acrescento que talvez seja o povo, que sejam aquelas pessoas de traços suaves e sorriso amável que fazem do Gana o país de hoje.


"Akwaaba!"
É noite cerrada às 20h. À saída do avião, sente-se aquele bafo tropical que quase nos sufoca; humidade altíssima, quase 30 graus. O aeroporto de Acra recebe-nos com música ritmada de fundo, eventualmente de uma festa nas proximidades. Sabe bem sentir o ritmo quente africano com uma bela palavra de boas-vindas: "Akwaaba!" O inglês é língua oficial mas o Akan soa melhor, soa mais africano, mais cru, vindo da terra. Por azar não é só a música que nos espera; a fila de controle dos passaportes também... e essa é longa! Nada a fazer, temos que esperar, mostramos o passaporte e o cartão de vacinas com o selo da febre amarela, obrigatória para entrar no país. A rapariga loira ao meu lado (australiana) não passa despercebida, em terra de cor de chocolate.

Na terra do Chocolate
Foi por isso que aqui fui. Por chocolate, ou cacau. Uma óptima razão para viajar, para além de todas as outras maravilhas de uma viagem. O Gana é actualmente o segundo maior exportador de cacau do mundo, a seguir à Costa do Marfim. Estando agora envolvida numa organização que trabalha para melhorar a produtividade de pequenas plantações e proteger ao mesmo tempo a biodiversidade, mergulhei no chocolate de corpo e alma. Depois das reuniões chatas e difíceis (mas infelizmente necessárias) em Acra, demos um salto ao distrito de Suhum para visitar algumas plantações. O projecto engloba uma rede vasta de pequenos agricultores de cacau em todo o país que colhem com as mãos e o suor os grãos de cacau que vêm depois parar à nossa mesa como chocolate. Anichadas junto à floresta tropical, muitas vezes roubando dela terreno e recursos, as plantações de cacau exibem uma atmosfera muito semelhante à natural quando comparadas com outras agro-florestas; para além dos frutos coloridos de casca rija que crescem nos troncos acinzentados, as plantações são ocupadas por outras árvores que também dão frutos - e possivelmente outros rendimentos à família, ou então madeira. Árvores cuja sombra q.b. ajuda o cacau a crescer.

Árvore de cacau com frutos quase maduros; grãos de cacau em fase de secagem
Quando compramos uma tablete de chocolate não fazemos a mínima ideia do processo que leva os grãos de um fruto que nasce no tronco de uma árvore a tornar-se um produto gourmet. E de quantas economias estão dependentes destas exportações, quantas vidas estão envolvidas em todo este processo, de quantas famílias se sustentam secando os grãos de cacau ao sol no seu terraço.
A grande maioria do cacau é exportado em bruto para fora do país (Europa), onde é processado e transformado nas mais deliciosas iguarias. Acontece por vezes que não se encontre chocolate à venda no próprio país produtor (lembro-me de São Tomé), mas no caso do Gana há algumas marcas, até agora desconhecidas para mim. "Kingsbite", "Ekstrom", "Divine"... provei o Kingsbite de uma pequena tablete que a empregada do hotel me punha todos os dias em cima da cama e achei-o forte, de travo amargo e pouco refinado (estou mal habituada à Lindt!).
Guerras pelo "cacau"
"Não tens cicatriz, não és Ganês". É assim que respondem a descendentes Ganeses criados fora do país. "Se a pele está limpa, não és do Gana". Aqui, cicatriz toda a gente tem. Fruto de rituais tribais, de jogos com catanas entre crianças (vi crianças minúsculas com uma catana na mão) ou de ataques mais sérios. George, o técnico ganês simpático que nos acompanha, exibe disfarçadamente a sua, não tem outro remédio. Mesmo que quisesse não passava despercebida. Vinha de um negócio de cacau dos "woods" (floresta) com algum dinheiro das transações quando foi atacado por assaltantes. A catana atingiu-o na cabeça e no braço com que instintivamente se tentou proteger. Ficou mal, mas recuperou. A pele arrepanhada da cicatriz que lhe atravessa metade da cabeça e do braço esquerdo mostram que o pior já passou. Hoje George ri com os seus dois filhos e conta-nos de forma divertida como consegue obter da sua mulher aquilo que quer, com aquele brilho nos olhos que só um homem em paz pode ter.
O cacau continua a ser a sua vida e George aponta-nos a direcção da sua própria plantação, algures no meio do mato cerrado a 1 hora de distância de Acra. Viajávamos em direcção a Suhum, na região Oriental do Gana, para umas horas de trabalho de campo. À medida que
avançávamos, desfilavam aos nossos olhos pequenos estaminés colados à beira da estrada, onde se criavam objectos e treinavam ofícios: costura, sapatos, artesanato, roupa tradicional, comida local.  De vez em quando, a estrada transformava-se num circo de cores e atraía multidões num mercado improvisado, onde montinhos de banana-pão, ananás, inhame, tomate e batata-doce se alinhavam em bancadas de madeira ou no chão.


Mercados de beira da estrada a caminho de Suhum

Tudo é negócio

Nas estradas africanas pode-se encontrar de tudo, de "sachets" de água fresca a caixas coloridas de Kleenex. São muitas as pessoas que aproveitam as paragens obrigatórias dos carros nas filas e nos semáforos para tentar vender os tesouros que equilibram majestosamente na cabeça. São crianças de olhar meigo, jovens magricelas ou adultos de sorriso triste que enfrentam todos os dias a poluição, as buzinadelas e o ar aborrecido dos passageiros nos carros para ganhar uns trocos, neste caso uns "cedis" (a moeda do Gana, 2 cedis equivalem a 1 dólar). É uma estranha forma de vida que se repete em quase todas as estradas, em todos os países das regiões menos desenvolvidas. O Gana não é excepção; apesar de ser considerado um bom exemplo no caminho do desenvolvimento africano, não deixa de fazer parte desta África arrebatadora, onde tudo se pode transformar num negócio.
  
Terra de contrastes
Acabáramos de passar um mercado em alvoroço e logo a seguir vejo um jovem africano a dormir descansado sob o céu nublado. Crianças sorridentes e descalças manejam uma catana enquanto jipes apetrechados passam em alta velocidade. Aqui, os contrastes desfilam sorrateiros aos nossos olhos de uma forma que o nosso cérebro europeu, formatado para a ordem, não consegue entender. Rebuliço e tranquilidade, sumptuosidade e miséria, alegria e desespero. As roupas de estilo europeu, calças de ganga e camisola de malha, numa jovem mãe  com a sua criança colada às costas com o tradicional pano africano. Barracos de madeira onde coabitam famílias numerosas mas onde cada membro do clã exibe um telemóvel. Jovens parados à beira da estrada à espera que algo aconteça quando há um país inteiro para construir. Se calhar é melhor mesmo não entender, apenas apreciar e aceitar.



"Agarra que é ladrão!"
Outro dos contrastes que vivenciei nesta viagem tem um toque de crueldade medieval. Vimos uma meia-dúzia de pessoas que esbracejavam com vigor enquanto caminhavam ao longo de um muro de pedra gasta, perpendicular à estrada onde passámos no jipe da empresa. Um dos homens ia muito encolhido e tentava proteger-se dos restantes. Espera, será que vi bem? Esse homem estava nu, e os que o cercavam batiam-lhe com cacetes e gritavam-lhe aos ouvidos. Atónitos, perguntámos ao nosso motorista o que se passava. "É um ladrão". O castigo, esse, é partilhado por polícias e populares, à vista de toda a gente. Este episódio peculiar ficou na memória, mas na realidade achei os Ganeses muito amáveis e prestáveis. E achei o Gana um país que, apesar dos paradoxos humanos, vale a pena conhecer.

Loucura de segunda classe

Ainda hoje não sei o que me deu na cabeça. Só pode ser porque sou louca. Gosto de acreditar que o sou no bom sentido do termo, umas pitadas aqui e ali de desvario não fazem mal a ninguém. Só quando a loucura roça a insensatez, o caso pode tornar-se sério. Mas deixo ao vosso critério esta avaliação. Ah, já me esquecia! Peço o favor de não contarem esta história à minha mãe, que já sofre o suficiente quando parto sozinha de mochila às costas.
Janeiro de 2010, nos trópicos. A túnica rosa colava-se à minha pele. Não fosse a mochila que trazia às costas e poderia passar (quase) por indiana, ou parsi pelo meu tom de pele mais claro. A túnica fora comprada numa loja em Bombaim, de onde tinha saído uns dias antes. Rumara em direcção ao sul da Índia, no estado de Kerala, onde Vasco da Gama também se encantou.

 As backwaters de Cochim e a Igreja de São Francisco, onde Vasco da Gama esteve sepultado

Na estação de comboios de Cochim, aguardava pacientemente na fila da bilheteira pela minha vez. Tinha acabado de decidir que iria até Trivandrum, a minha próxima paragem, em segunda classe. É uma viagem de 4 horas, quando corre bem (o que raramente acontece). “Na Europa ando sempre em segunda classe, quão mau pode ser?”, pensei. E assim teria possibilidade de contactar com a vida real, sem os filtros destinados ao turista. Chega a minha vez e peço um bilhete para Trivandrum em segunda classe. “Que bilhete é que quer?”, pergunta o senhor da bilheteira, de bigode esparso, óculos pequenos assentes sobre o nariz e ar de poucos amigos. Repito calmamente. Ele pergunta de novo que bilhete quero. “Será que aqui no sul o meu inglês não se percebe?” Dou a mesma resposta. De novo a pergunta. E eu, estupefacta mas decidida, digo a mesma coisa. O senhor atrás de mim na fila, cansado da espera, diz com impaciência: “Venda-lhe lá o raio do bilhete, ela quer ir em segunda classe”. Recebo finalmente o que tinha pedido.
20 minutos depois, vendo que o comboio estava atrasado, dirijo-me a uns funcionários da estação; dois jovens indianos, de camisa branca encardida, estavam sentados na conversa com o ar mais relaxado do mundo. Outro senhor, um pouco mais velho e de aspecto aprumado, mantinha-se de pé e participava na conversa com o olhar. Aproximei-me resoluta com o bilhete na mão. Ao ver “segunda classe” escrito no bilhete, o senhor de pé perguntou-me: “A menina sabe que tem um bilhete em segunda classe?” Sim, sei. “ Tem a certeza que quer ir em segunda classe?” Sim, tenho. Confirmei com os jovens que o comboio estava mais meia-hora atrasado e, sem dar importância ao ar alarmado do senhor, virei costas. Mas a sua preocupação era autêntica e, poucos minutos depois, na sua certeza que o bilhete em segunda classe era um lamentável engano, veio ter comigo e disse-me com a maior convicção que eu devia mudar de bilhete para a classe acima – sleepers, que custava apenas mais 80 rupias (pouco mais de um Euro), mas que se era um problema de dinheiro, então eu poderia acompanhá-lo na classe AC (Ar Condicionado) sem custos extra porque como era revisor no comboio podia deixar-me entrar. Confusa com a sua prontidão para me ajudar e sem perceber tal insistência, agradeci delicadamente e voltei a virar costas. Raios, parecia que ninguém queria que eu fosse em segunda classe. Iria perceber porquê momentos depois.

O comboio chega. Descascado de tinta, sem portas e atulhado de cabeças. Procuro as carruagens de segunda classe, só encontro as de homens. “Não, não me meto ali.” Olhos ávidos parecem perseguir-me. Pergunto onde são as carruagens de mulheres. Apontam-me o fim do comboio, que está para arrancar. Bolas! Meto-me a correr com a mochila às costas, parece pesar uns 30 quilos. Agarro-me ao corrimão de metal à entrada da última carruagem do comboio e salto. Mesmo a tempo! Naquele preciso momento percebo todas as perguntas sobre o bilhete de segunda classe. Minúscula, de metal escurecido pelo tempo, com um cheiro intenso a humidade e ao lixo espalhado pelo chão, a carruagem estava a abarrotar de mulheres e crianças. Todas aquelas cabeças se viraram para mim ao mesmo tempo. Eu, a única estrangeira em segunda classe. Como era de esperar. A classe “sleepers” é mais confortável, mais limpa e ainda barata e os indianos com algumas posses também a preferem. “E agora?”, pensei. Em momentos de loucura montamos as nossas próprias armadilhas, como eu fizera, ignorando todos os avisos. Felizmente o universo, quando gosta de nós, também nos dá as ferramentas para sairmos delas. Sacudi os fragmentos do choque, pousei a mochila e sentei-me em cima dela, como se tivesse planeado tudo desde o início. Duas horas depois, estava sentada num canto do banco gentilmente posto à minha disposição, já conhecia a vida da adolescente sentada ao meu lado e partilhava as minhas bolachas com as caras sorridentes que me rodeavam. O universo, afinal, gosta de mim.