Janeiro de 2010, nos trópicos. A túnica rosa colava-se à minha pele. Não fosse a mochila que trazia às costas e poderia passar (quase) por indiana, ou parsi pelo meu tom de pele mais claro. A túnica fora comprada numa loja em Bombaim, de onde tinha saído uns dias antes. Rumara em direcção ao sul da Índia, no estado de Kerala, onde Vasco da Gama também se encantou.
As backwaters de Cochim e a Igreja de São Francisco, onde Vasco da Gama esteve sepultado
Na estação de comboios de Cochim, aguardava pacientemente na fila da bilheteira pela minha vez. Tinha acabado de decidir que iria até Trivandrum, a minha próxima paragem, em segunda classe. É uma viagem de 4 horas, quando corre bem (o que raramente acontece). “Na Europa ando sempre em segunda classe, quão mau pode ser?”, pensei. E assim teria possibilidade de contactar com a vida real, sem os filtros destinados ao turista. Chega a minha vez e peço um bilhete para Trivandrum em segunda classe. “Que bilhete é que quer?”, pergunta o senhor da bilheteira, de bigode esparso, óculos pequenos assentes sobre o nariz e ar de poucos amigos. Repito calmamente. Ele pergunta de novo que bilhete quero. “Será que aqui no sul o meu inglês não se percebe?” Dou a mesma resposta. De novo a pergunta. E eu, estupefacta mas decidida, digo a mesma coisa. O senhor atrás de mim na fila, cansado da espera, diz com impaciência: “Venda-lhe lá o raio do bilhete, ela quer ir em segunda classe”. Recebo finalmente o que tinha pedido.
20 minutos depois, vendo que o comboio estava atrasado, dirijo-me a uns funcionários da estação; dois jovens indianos, de camisa branca encardida, estavam sentados na conversa com o ar mais relaxado do mundo. Outro senhor, um pouco mais velho e de aspecto aprumado, mantinha-se de pé e participava na conversa com o olhar. Aproximei-me resoluta com o bilhete na mão. Ao ver “segunda classe” escrito no bilhete, o senhor de pé perguntou-me: “A menina sabe que tem um bilhete em segunda classe?” Sim, sei. “ Tem a certeza que quer ir em segunda classe?” Sim, tenho. Confirmei com os jovens que o comboio estava mais meia-hora atrasado e, sem dar importância ao ar alarmado do senhor, virei costas. Mas a sua preocupação era autêntica e, poucos minutos depois, na sua certeza que o bilhete em segunda classe era um lamentável engano, veio ter comigo e disse-me com a maior convicção que eu devia mudar de bilhete para a classe acima – sleepers, que custava apenas mais 80 rupias (pouco mais de um Euro), mas que se era um problema de dinheiro, então eu poderia acompanhá-lo na classe AC (Ar Condicionado) sem custos extra porque como era revisor no comboio podia deixar-me entrar. Confusa com a sua prontidão para me ajudar e sem perceber tal insistência, agradeci delicadamente e voltei a virar costas. Raios, parecia que ninguém queria que eu fosse em segunda classe. Iria perceber porquê momentos depois.
O comboio chega. Descascado de tinta, sem portas e atulhado de cabeças. Procuro as carruagens de segunda classe, só encontro as de homens. “Não, não me meto ali.” Olhos ávidos parecem perseguir-me. Pergunto onde são as carruagens de mulheres. Apontam-me o fim do comboio, que está para arrancar. Bolas! Meto-me a correr com a mochila às costas, parece pesar uns 30 quilos. Agarro-me ao corrimão de metal à entrada da última carruagem do comboio e salto. Mesmo a tempo! Naquele preciso momento percebo todas as perguntas sobre o bilhete de segunda classe. Minúscula, de metal escurecido pelo tempo, com um cheiro intenso a humidade e ao lixo espalhado pelo chão, a carruagem estava a abarrotar de mulheres e crianças. Todas aquelas cabeças se viraram para mim ao mesmo tempo. Eu, a única estrangeira em segunda classe. Como era de esperar. A classe “sleepers” é mais confortável, mais limpa e ainda barata e os indianos com algumas posses também a preferem. “E agora?”, pensei. Em momentos de loucura montamos as nossas próprias armadilhas, como eu fizera, ignorando todos os avisos. Felizmente o universo, quando gosta de nós, também nos dá as ferramentas para sairmos delas. Sacudi os fragmentos do choque, pousei a mochila e sentei-me em cima dela, como se tivesse planeado tudo desde o início. Duas horas depois, estava sentada num canto do banco gentilmente posto à minha disposição, já conhecia a vida da adolescente sentada ao meu lado e partilhava as minhas bolachas com as caras sorridentes que me rodeavam. O universo, afinal, gosta de mim.
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