Hoje recebi uma coisa especial. Uma
carta, da Austrália. E é especial porque hoje em dia receber cartas é algo raro
e porque há vários anos que não recebia correspondência postal daquele lado do
mundo. Esta carta é especial ainda por outra razão: porque me trouxe fotos do
novo elemento da família, daquela família de coração que lá conheci e lá
deixei, já lá vão mais de 7 anos. Chama-se Keya e é uma princesinha indiana
nascida em território australiano no passado mês de Maio.
Esta carta trouxe-me também outras coisas: recordações, daquelas boas, a sensação de pertença que aquece o coração, e algumas saudades. Sem nostalgia, apenas a consciência que o tempo passa, a pessoa cresce e a vida evolui. Lembro-me perfeitamente do dia em conheci a mãe de Keya, a Noella. Era sábado, eu tinha pisado solo australiano pela primeira vez uma semana antes e naquele dia tinha decidido participar na visita ao Zoo de Nowra, a sul de Wollongong, organizado pelo comité de boas-vindas aos estudantes internacionais. Durante a viagem de autocarro, entreti-me a conversar com o rapaz colombiano que se sentou ao meu lado, com os discursos introdutórios da praxe: “de onde vens”, “o que vens estudar”, “o que fazias antes”. – Era professora, disse eu. E uma voz melodiosa apareceu vinda do lugar atrás de nós, dizendo “That’s awesome, I want to be a teacher!” Era a Noella, que silenciosamente participava na nossa conversa e não conseguiu conter o entusiasmo quando descobriu que eu era professora. Na altura não lhe falei no meu desencanto com o ensino que me levou a partir para aquele lado do mundo… é engraçado como a condição que inicialmente nos uniu – ser professor – deixou praticamente de existir, sem destruir a relação que construímos desde então.
Foi amizade à primeira vista! Sim,
porque também há amizades assim, que nascem de uma gota de água e se transformam
em oceanos. A partir desse dia a Noella estava lá para mim e eu estava lá para
ela. Ela foi minha amiga, minha irmã, a minha família enquanto eu lá estive. Partilhámos
as alegrias e as dificuldades, trabalhámos na ONG juntas, arrendámos uma casa
para nós junto à praia. Eu lamentei as minhas más escolhas de amor, ela revelou
as dúvidas dela. Quando eu não tinha dinheiro para as compras, ela trazia-me o
jantar do restaurante indiano onde trabalhava. Refilámos juntas com uma máquina
automática de chocolates que engoliu a minha última moeda de 2 dólares (para
aquela semana só tinha 5 dólares para gastar) e não nos deu o twix pelo qual salivávamos. Ficámos
ambas viciadas no cappuccino do café Picasso. Ela aprendeu comigo a gostar do
mar e a usar um biquíni (na Índia as pessoas vão ao mar vestidas), eu aprendi com
ela a usar o lápis dos olhos (maquilhagem era coisa que até então não me
interessava). Mentimos juntas aos pais dela para ela poder ir à Europa com o
então namorado italiano. Vimos o nascer-do-sol sobre o mar no dia em que me vim
embora, de regresso a Portugal, com a promessa mútua de nos voltarmos a ver
passados 2 anos, na Índia.
E assim foi. Dois anos depois, no
final de 2006, peguei na minha mochila e parti à descoberta da Índia. Fui recebida
de braços abertos pela sua família, tão semelhante à minha em muitas coisas. O ser
humano é sempre ser humano, em qualquer lugar do planeta. Depois de alguns dias
sentia-me em casa. Em 2009, reencontrámo-nos. De novo na Índia, para o seu
casamento. Desta vez ela parecia mais crescida, mais ocupada, mais séria, mais...
distante. Quando nos encontrámos no aeroporto senti que o cordão que nos unia
tinha ficado de repente mais fino… ou melhor, os anos de distância foram desgastando
o nosso fio de ligação, porque apesar de tudo e de todas as coisas electrónicas que existem, há coisas do dia-a-dia que não
partilhamos quando temos meio mundo entre nós. Mas apesar desta sensação de mudança
não desejada, foi bom estar com ela. Voltámos a partilhar segredos, angústias,
sonhos. Tomei consciência que a amizade também se ajusta e não deixa de ser
bonita por isso, porque os oceanos também são esporadicamente percorridos por ondas. E voltámos
a separar-nos. Até ao dia em que eu me decidir regressar à Austrália para
conhecer pessoalmente a Keya.