Entro na sala escura, pisando o
chão de pedra gasta e lama encrustada. O cheiro intenso a humidade atinge-me
como um murro no estômago. A porta atrás de mim fecha-se. A escuridão aumenta, uma
luz parca entra por um buraco alto na parede. Distingo um espaço de 12 m2
limitado por paredes grossas de pedra. Sinto os murmúrios do tempo, vozes de
homens que ecoam nas paredes, ao mesmo tempo agressivas e subjugadas. Neste
espaço exíguo coexistiram 150 homens, acorrentados uns aos outros enquanto os seus
carrascos os preparavam para o transporte até ao outro lado do Oceano.
Mercadoria viva. Escravos. Amarrados aos pares, eram levados por um túnel e
empurrados para os navios de carga através da porta sem regresso. Sim, esta
porta existe. Quem por lá passasse sabia que não mais regressaria. Muitos foram
os que não chegaram a passar por ela, sucumbindo à fome, à doença, à
humilhação, à violência. Arrancados à força das suas terras por braços europeus
ou tribos rivais, milhares de homens e mulheres africanas viram a sua vida
reduzida a cinzas, as suas almas esmagadas e os seus corpos – escuros por
natureza - dominados às mãos dos colonos.
Foi assim em Cape Coast durante séculos. Construída pelos ingleses no séc. XVI, esta fortaleza alva erguida à beira-mar onde palmeiras esguias se alinham, aparenta tranquilidade e segurança. Puro engano. Durante séculos este local recebeu escravos, manteve-os em cativeiro, maltratou-os, entregou-os à morte quando não se submetiam ou não resistiam e embarcou-os para as Américas. As marcas permanecem: os sulcos na parede da sala escura, onde os mais rebeldes eram deixados a morrer sem água, comida ou luz, esculpidos com os grilhões em momentos de desespero; as bolas de ferro no chão do pátio onde prendiam dias a fio as mulheres que se recusavam a dormir com o governador; as portas pesadas das masmorras, cubículos de pedra fria onde se amontoavam pessoas como gado, enquanto o governador passeava nos seus aposentos avantajados escolhendo as escravas que iria violar nessa noite.
O forte de Elmina |
Vista do forte de Elmina sobre o Atlântico |
A história repete-se ao longo da
costa do Gana, onde outras tantas fortalezas se erguem, alheias ao sofrimento
que representam. O estilo arquitectónico é-me algo familiar; foram os
portugueses os primeiros a construir aqui um entreposto, inicialmente para
trocas e armazenagem de ouro e outros bens: São Jorge da Mina – a Elmina de
hoje. O retrato do Infante D. Henrique, fascinado por África e grande impulsionador
da expansão portuguesa, aparece escarrapachado no museu do forte de Cape Coast. Do fundo do meu peito sinto
uma vibração ardente a subir de rompante: são a vergonha e a mágoa de partilhar
ADN com pessoas que contribuíram para esta incompreensível crueldade.
Elmina hoje |
A paisagem em redor de Elmina é
bonita, um caos tropical de casas amontoadas, gente, cores e movimento, lado a lado com a passividade
do Atlântico. Os canhões perfilados geometricamente nos rebordos do forte montam
um cenário engraçado e a brisa agitada vinda do mar baixa o calor húmido para
níveis suportáveis. No final da visita Sheryl, a jovem e simpática guia,
sintetiza com sabedoria aquilo que permite à humanidade sobreviver a estas cicatrizes:
o perdão já foi dado a esta escravatura, mas apesar disso é nossa responsabilidade
continuar a passar a mensagem para evitar que outras formas de escravatura persistam. Por
isso no chão das antigas masmorras vêem-se hoje coroas de flores trazidas por
visitantes, em homenagem a quem sofreu a escravatura. Grupos de turistas afro-americanos
cantam melodias à luz das velas nas masmorras ao lado da porta sem regresso,
por onde passaram um dia os seus bisavós. E turistas curiosos deixam-se fechar nas salas de pedra fria onde marcas profundas destes tempos continuam gravadas.